sexta-feira, 30 de março de 2012

Enquanto chove

Marco Heisler, 2009

Encontro nos dias de chuva uma forma de me chegar mais perto, de me espreitar com uma claridade diferente dos dias secos e soalheiros. E ando debaixo de chuva miudinha com a verticalidade das gotas de água como se eu e elas fizéssemos parte da paisagem natural. Nesses dias, em que os meus olhos vêem com argúcia os cantos mais recuados da alma, invade-me uma nostalgia feliz daquilo que me encontro através da chuva. Os dias de chuva não são em mim tristes como o céu cinzento que faz chover. São uma janela aberta àquilo em que eu me esqueci e que recupero às escondidas do sol que, tantas vezes, me cega a vontade de ver. A transparência das gotas de chuva devolve-me a luz do que fui e ilumina-me o que sou. De amanhã nada sei, nem a chuva de hoje o desvendou. Guardo apenas a luminosidade que, aqui e agora, me toca na alma.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Eternidad

Roe...2008

"...Las cosas que se mueren no se deben tocar."

Dulce María Loynaz, in 'Eternidad'

quarta-feira, 28 de março de 2012

A propósito da razão do coração

Anabark, Tecto da cama (MAI2006)

"(...) A emoção e o desejo são como a espuma e as ondas do mar é o que torna navegar excitante mas não decide a direcção do navio. Para o amor ser eterno (e o amor só faz sentido pensado e vivido como eterno) é necessária a razão para superar as inconstâncias do desejo. E é também a razão que alimenta e é capaz de reavivar o desejo: as dúvidas que planta, a sedução que promove, a imaginação que desperta. O amor verdadeiro só existe suportado pela razão. Mas não é uma razão qualquer. Não é uma razão de mercearia em que o amor se transforma numa lista de compras pela qual verificamos se ela tem ou não os itens a adquirir (importa passar mais tempo a procurar razões para amar do que a elencar as razões para não amar). E também não é a chamada razão do bom senso em que subordinamos o amor a uma certa razão social. Não é a razão dos outros mas a nossa razão. É uma racionalidade vinculada à emoção. O amor encontra-se quando a emoção nos diz para seguir a razão. (...) Porque o amor tem necessariamente uma razão de ser. O amor é o que sobrevive para lá das dúvidas, suportado pela razão. (...) Fácil é evocar o coração para não ouvir a sua razão. Fácil também é escudar-se na razão para fugir ao coração. Difícil e verdadeiramente romântico é decidir do amor com o verdadeiro uso da razão. Só assim se encontram as razões do coração. As razões que dita o coração e pelas quais alguém nos faz perder a razão."


Miguel Poiares Maduro, in Diário de Notícias, 16. Março. 2005

terça-feira, 27 de março de 2012

A propósito do Amor

Autor desconhecido

O Amor não se compadece com a dúvida nem com a indefinição. É um estado absoluto de ser em tudo à nossa volta. É um tudo por oposição ao nada, porque no amor não existe um meio termo e quem se aceita e vive nesse intervalo não ama ou não sabe o que pode ser o Amor. O Amor desarruma-nos de alto a baixo e recompõe-nos numa ordem diferente à que estamos habituados. O Amor é um incómodo, o coração na garganta e a ansiedade que nos persegue para todo o lado. O Amor vem-nos com a certeza do desassossego e a inevitabilidade da dor, quem o sente vive-o por inteiro e sofre-o em duplicado. Ninguém que ame se perde na dúvida do que sente. A dúvida que nos consome a existência é encontrar quem nos ame desta forma plena e verdadeira. Gostar não é amar e quem amou sabe isso de cor, debaixo da pele, a dormir e acordado. Este tudo e tão completamente que é o Amor só os loucos e os inconscientes desperdiçam, porque este estado absoluto de querer tanto a alguém é tão raro quanto irrepetível... e só vivemos uma vez.

domingo, 25 de março de 2012

Só para adultos

Kees Terberg, In Vino Veritas XII

E quando achamos que sabemos tudo, aprendemos mais um bocadinho da certeza que nos falta. E adormecemos nessa parte descoberta para acordarmos mais inteiros, mais acrescentados no que somos e menos presos ao que julgamos ser. Não é o tempo que nos amadurece, mas tudo o que a sua passagem nos ensina. O tempo confirma ou desmente a essência, ou a falta dela, das pessoas. Traz certezas, desfaz enganos e, por vezes, descobre-nos que, afinal, a razão que a nós mesmos negámos, por vontade de acreditar numa história encantada, estava do nosso lado. E, ás vezes, doi ter razão, tanto que desacreditamos a fé que, antes, nos salvava. E os dados voltam a ser lançados em busca de melhor sorte. Amadurecemos uma ideia que cresceu certeza e uma vida morreu. Do vinho não se fazem uvas. A certeza que nos encontra com o tempo abraça-nos a calma de quem aprendeu uma lição. Não foi tempo perdido. Resignada a alma reencontra-se e recompõe-se mais forte. A vida dá-nos a prova que nos falta, não é importante ter razão, importa sim a humildade de reconhecê-la e aceitá-la em quem a tem quando percebemos que julgámos mal e nos enganámos.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Livre

Steve Gosling, Blue on red

Passo a passo todos os caminhos são possíveis. Só aquilo que acreditamos impossível se torna impossível de facto, primeiro por falta de fé depois pelas condições que nos impomos e que nos tolhem os braços. A vontade é inimiga do impossível e a liberdade também. Passo a passo caminho em liberdade, ao encontro de tudo o que acredito, na alma, como essencial. Nada me prende e ninguém me censura, sou livre na minha decisão. Escolho o meu querer, a minha força e sempre o meu coração. Sem essa liberdade eleita e defendida não sou nada, seria a morte porque não existe coisa pior do que a escravidão do vazio. Rejeito a ideia do impossível porque me sei livre. Respondo por mim, vou onde quero ir e não gosto que me digam 'só podes ir até aqui'.

terça-feira, 20 de março de 2012

Luto

Rousselziak, Le Lac

Não te espero. Não te quero senão pela vontade, que não tens, de me quereres a mim também. Vesti o luto de um amor vencido que nada mais tem a perder e agora já não me esqueço de me lembrar de te esquecer. Deixaste de gostar do que, em mim, dantes, te era infinito. Hoje desconheço-te, desencontrei-me do que antes te conheci. Deprecias o que ainda existe em mim. Não te oiço nem te vejo senão pelo que te imagino. Saber-te, não te sei. Não te resto hoje nem sei se te resto no tempo em que, um dia, nos encontrámos. Não sei do que te lembras daquilo que dizes não ter esquecido.  Não posso recolher o que de nós perdeste pela estrada do fim. O que guardo é meu, porque o sempre ficou do meu lado e tu moras num outro mundo sem pontes nem caminho de volta.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Integridade

Tomasz Dziubinski, The Black Art, 2010

No que não tenho desapareço, deixo aos poucos de existir. No que não tenho sou memória, vida que só existe em mim. No que não se vê o tempo envelhece-me num lugar distante. No que não se vê deixei de ter lugar para além do que sinto em mim. No que não esqueço só me abraça o vazio. No que não encontro sinto o medo e tenho frio. Em quem morri não volto a ser. No que me ficou, não serei outra coisa. Tanto faz. O que sou basta-me, tenho um coração imenso para doar e um sentimento raro que aprendi como princípio de vida. Sou esse infinito íntegro que, um dia, floresceu em mim.

domingo, 18 de março de 2012

Pontos de fuga

Steve Gosling, Sea, sand & sunset

A verdade é uma história diferente consoante a voz que a conta ou que tenta encontrá-la. As razões mudam conforme os lados da questão e a história que se conta não será nunca a que aconteceu mas o que cada uma das partes compreendeu sem modéstia e com a arrogância de quem se defende em primeiro lugar. A verdade perde-se nas versões que a relatam e, nessa forma obcecada de querer ser mais forte e ter inteira a razão, perde-se o sonho, a promessa de um Sempre e a confiança no abraço do Amor. Porque a verdade não é absoluta não haverá nunca versões coincidentes, nenhuma das histórias será a verdadeira. As histórias que se contam são formas encontradas de nos segurarmos de pé no nada que nos fica depois do tudo que nos falhou. A verdade anda longe de quem quer ter razão. Mente-se, inventa-se, reescreve-se o fim da história com o azedume do desamor. E porque a vontade de perdão morreu, acreditamos que temos a razão toda para curar a nossa dor. 

quinta-feira, 15 de março de 2012

Intimidade

Looseends, Sea Smoke #1

Tudo aquece e ganha cor pelo conforto de estar com alguém que nos conhece por dentro e por fora e nos adivinha quando nós mesmos não nos sabemos por inteiro. Não existe maior intimidade do que aquela que nos abraça sabendo o que somos quando a nós mesmos nos enganamos por nos ser difícil aceitar aquele lado nosso que, não nos agradando,  preferimos ignorar. Quem amamos aprendemos de trás para a frente, porque tudo o que conhecemos nos parece pouco e queremos saber mais. Estamos atentos como se a nossa vida dependesse de pormenores, coisas poucas e pequenas que queremos aprender a amar como prova de amor absoluto. Quem ama recebe-nos no conforto de sermos naturalmente o que nos vai na alma, sem inibições. Quando amamos não descansamos, todos os dias arrumamos e desarrumamos. E nunca adormecemos em silêncio porque todas as noites temos um mundo novo para partilhar. Quando amamos, o que somos não é apenas nosso, queremos dá-lo e ensiná-lo a quem sabemos que nos conhece por amor.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A memória que não dura

Melanie Lawson (National Geographic)

O Tempo, que dizem ser bom conselheiro, escreve ele mesmo o capítulo derradeiro. A memória não será para sempre, porque se desvanece no passar dos dias até se tornar em vaga lembrança, presa por um fio, de coisas desordenadas. O que não ficou, não será nuncaO que nasceu e não foi cuidado, morre sem nunca ter crescido. O que não se sente não existe e não existindo não faz sentido acreditar que sim. Tudo desaparece, tudo se esquece. A fé que salva mata-nos também no que queremos e não sabemos guardar. Porque depois do adeus não há mais nada, a não ser um fim a que nem a memória escapa.

terça-feira, 13 de março de 2012

A curva da vida

Stanko Abadzic, Road with Light and Shadows, 2011

Que triste, imagino eu, ser velho antes do tempo nos envelhecer! Que pobreza de espírito é pensar e acompanhar o mundo de forma estagnada, sem perceber que não existem linhas rectas onde as coisas acontecem tal como como programadas. Que maçada deve ser viver sem o sobressalto das curvas e contracurvas e morrer igual ao que se nasce, espartilhados ora no preto ora no branco, ignorando outras formas de ser e de estar mais coincidentes com o que o mundo, ele próprio, evolui. Lamento tão profundamente os que dormem fechados em visões de existência estanque, presos a um deve e um haver ultrapassados, como se a verdade fosse um caminho de sentido único e a nossa humanidade perfeita. O desvio existe e ainda bem, porque é na aventura do desvio que o tempo não nos vence e não nos deixamos envelhecer à sombra de ideias feitas e esvaziadas de conteúdo. O desvio é, acima de tudo, vontade de vida e sonho.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Carne viva

Yiannis Pavlis (2007)

Acima de tudo viver é sentir. Não é nascer, crescer e morrer, sendo-o também. Viver é amar, sorrir e sofrer com a dor, porque o Amor dói por tudo o que nos faz sentir de uma forma ou de outra. A vida não é um estado alucinado de felicidade ininterrupta que só os inconscientes acreditam. É ganhar e perder e sentir  o peso da perda como a alegria da vitória, com a mesma intensidade. Viver não pode ser apenas respirar por entre gente ou ficar pela metade. É querer sempre mais daquilo em que se acredita. Viver é conquistar e não evitar os campos de batalha. Não existem estados de tranquilidade absolutos para quem se quer vivo. O desassossego constante do sentir vale cada lágrima de dor que bate no peito em lugar de um coração feliz. Porque estar vivo é sentir, seja lá o que isso for, mas que seja Amor acima de tudo. Viver é a aventura de uma busca de sentido, errar, aprender com o erro e trabalhar para acertá-lo. Estarmos vivos é sentir Amor e dor, aceitando que nos dói porque nos é importante e pleno de sentido. Viver não é respirar, sorrir e andar para frente pela metade. É sentir vazios, ausências e saudades e preenchê-los com Amor de verdade.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Montanha

Emerald Lake (Tongariro National Park - Nova Zelândia)

Depois de muito, depois de tudo, já não tenho mais alternativas do que aquelas que esgotei, a não ser sanar a parte doente que me deixa imóvel, estagnada como que à espera de uma liberdade que eu mesma não me acolho. Não tenho mais decisões para tomar, nem escolhas nem planos para testar. Tenho um caminho interior para andar e a minha verdade das coisas. Só posso agir sobre o que está ao meu alcance, no que depende de mim. A minha montanha é alta e impossível como todos os amores mal resolvidos são, para o esquecimento, tarefa impossível. Não sei o que está certo nem o que está errado e o que é justo ou injusto é-me indiferente, porque nada é tão linear assim por muito conveniente que nos fosse simplificar a vida dessa maneira. O que sei é que de nada adianta teimar numa causa tão perdida. Quem me dera ter respostas sábias e desatar as mãos de um sentimento que, para além de mim, não vale nada!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Cegueira

Sheila, May 28. Abstract swan, 2006

Nem sempre o óbvio é perceptível. Nem sempre os olhos nos deixam ver a realidade. Nem sempre acreditamos no que vemos porque, por vezes, não vemos só olhamos. Quando os sentidos nos falham, importa ver com o coração. O que sentimos não nos engana, será sempre verdadeiro. A luz que alma acrescenta ao que somos em relação ao mundo é a nossa real imagem no espelho. Não se vê, sente-se e dá-se a sentir a quem nos quer bem. Quando os olhos nos falharem, tudo o que nos resta é a verdade que o coração põe diante de nós. Quando olho à minha volta acredito no que sinto na alma com o coração iluminado. O que não vejo com coração não existe, é triste, pobre e moribundo. A verdadeira morte é aquela que nos impomos dentro do peito porque nos convém ou porque nos dá jeito não ver nem sentir a verdade que da alma nos vem.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Gota a gota

Stanko Abadzic, Reflections, 2007

E a terra reflecte o céu, tudo do avesso, numa poça de chuva imaginada transparente e lúcida. No céu distante não sobra mais nada ao encontro da terra. Tudo é ar, vento e tempo que sobra. Reparo nas nuvens que passam e não ficam, como repara em quem passa sem me prender a atenção. Tenho o resto da minha vida para ser de novo. Tenho tempo suficiente para voltar a nascer e viver o que alma me dita. Tenho parte de mim à espera de ser aquilo em que se acredita e outra a acontecer no resto que me fica. Sou terra e céu juntos em alto mar. Nas ondas encontro a vida das vidas que desperdicei a naufragar em poças de água.

terça-feira, 6 de março de 2012

Degelo

J. Le Montagner, Tear Winter series (2005)

Pendurei o inverno numa corda a ver se aquece e se torna primavera de dentro para fora. E espero que chova, e muito, para que nasça forte a esperança e a vontade de ser calor. Neste pedaço de terra onde me passeio em bicos de pé sinto o chão, que sempre ousou ser fértil, à espera em desassossego. Semeei sonhos e deles não desisti e fé no que ainda não vivi. E espero pela primavera. No coração cuido do jardim feito de memória e da força de um sentir profundo. O lado infinito de mim não tem estações do ano, tem flores que o tempo não seca e o Amor que sempre teve, vivo e sem fundo. No coração o tempo é uma janela por onde se espreita o que sai da terra e o que nos fica para sempre na alma.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Estreia

Edward Weston, Nude, 1925

Porque o tempo nada pode contra o que a alma reclama eterno. Porque existem horas que duram para sempre debaixo da pele. Porque em mim houve um incêndio que nunca se apagou. Porque momentos únicos são, para além das palavras, aquilo que é verdadeiramente nosso. Porque possuo por inteiro o que não esqueço.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Sonho

Anabark, Total Recall (JUL2011)

E a vida que não são mais do que dois dias vai acontecendo mais depressa do que os ponteiros do relógio. E o relógio da vida nunca se atrasa por muito que nos pensemos adiantados. E há um momento certo para chegar á linha de tempo em que existimos em pleno e sem desfasamento. Ás vezes, enquanto dormimos, sonhamos e tudo parece no devido lugar, sólido, inteiro, como se um anjo da guarda trabalhasse por nós a noite como dia que sonhamos eternamente. Hoje sonhei que assim era, que acordava num beijo demorado, numa manhã de sol e cheia de música. E que a beleza das coisas simples me deixava sem palavras, perdida na contemplação. E, por intantes, deixei de fugir ao que sinto, deixei de fingir. Aceitei a miragem do tempo e fui, com coragem, até ao centro do coração. E de lá trouxe como agasalho a memória de um beijo sem chão.