quarta-feira, 30 de maio de 2012

Consistência

Anabark, Poço (Junho.2010)

Quando o Tudo nos encontra e acontecemos por inteiro, sobra pouco para acreditar mais e melhor. E depois do Tudo, guardamos a melhor parte de nós no silêncio de um poço sem cor nem fundo. A dor de quem perde é esse espaço infinito do Nada que nos aninha a saudade do que sabemos ter sido tão completamente e a certeza profunda do que não se repetirá da mesma maneira e nem na mesma intensidade. E a vida segue, o Tempo trás outro tempo atrás e, depois do Tudo, só nos resta viver pela metade, desconfiados, com o fardo do desperdício feito de erros por reparar e de equívocos por desfazer, sobre os ombros. Tudo o que somos constrói-se ao segundo, dia após dia, até ao fim da nossa vida. Não sabemos quanto tempo temos nem o que o tempo nos traz. Talvez por isso eu não desista do meu Sempre. Quem ama acredita e vive a ideia de Sempre, não como um acto de fé, mas porque amar para além de Tudo e da dor do Nada é a prova do que o que sentimos e vivemos foi verdadeiro e absoluto e não apenas um caso ou um instante numa linha de tempo passado. Não seria Amor se desaparecesse assim tão completamente em mim. Não seria Amor se sentimentos mesquinhos me vencessem para atenuar a dor.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

As saudades minhas

Brett Weston, Water reflection, 1973

Saudades tenho da ideia do Tudo que acreditei, em nós, existir para sempre. Saudades tenho do deslumbramento dessa ideia nos meus olhos todas as manhãs em que a vivi. Saudades tenho do peito a transbordar da ideia de Amor sem fim. Saudades tenho desse tempo infinito contado em beijos e abraços nos dias sem horas e em noites sem dormir. Saudades tenho dos instantes escondidos pela impaciência do Amor inadiável e pelo desassossego do corpo torturado de saudade. E mais do que saudades tuas, tenho saudades minhas, do que fui capaz de ser contigo porque, contigo, fui o melhor que me conheci. E toda a luz que guardo dentro é reflexo teu e do 'nós' em mim.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Em todas as ruas te encontro

 
Autor desconhecido, algures na Graça, Lisboa 

Em todas as ruas te encontro 
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura 

Em todas as ruas te encontro 
Em todas as ruas te perco 

Mário Cesariny

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A propósito de saudade...

Marisa D.L. Unfriendly pier, 2012

"Saudade é sentir que existe o que não existe mais. Saudade é o inferno dos que perderam, é a dor dos que ficaram para trás, é o gosto de morte na boca dos que continuam. 
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: aquela que nunca amou. E esse é o maior dos sofrimentos: não ter por quem sentir saudades, passar pela vida e não viver."

Pablo Neruda

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Risco

Noelia Magnusson

É preciso existir para criar e construir. A vida faz-se do instante do sonho para o momento em que arriscamos dar o passo para fora de nós mesmos. Sem essa inconsciência do risco nada se cria, tudo permanece numa sombra de possibilidades. Quem não arrisca, não existe em sentido próprio, vive à margem de si, à beira de um abismo invisível que só o tempo revelará. As horas que deitamos fora são hipóteses por testar. Temos pouco tempo para nos resolver no grande enigma em que nascemos. Ninguém vive por nós e não somos deuses na sua perfeição e imortalidade. Somos o que somos, imperfeitos, finitos e, ao mesmo tempo, cheios de sorte porque o erro faz parte da nossa condição e, arriscando errar, aprendemos um sentido de existência à escala humana, menos ambicioso mas, certamente, mais feliz.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Ganhar

Anabark, Relento (JUN10)

Lá bem no alto, uma paisagem de pedra é corpo da minha vontade. Não sei querer de mansinho, sei apenas que quero por inteiro mesmo quando não me sobra nada. Nunca amei pela metade nem mesmo quando só tinha metade do que queria. A intensidade do tudo é uma forma de vida, uma natureza de alma e não somos todos iguais, uns são mais, outros menos e alguns nem chegam a ser sequer. Perder é querer, poder e não ter. Ganhar é poder o que se quer muito sem desistir, porque desistir é ter medo de cair. Aprendemos a andar depois de muito cair e vencer o medo. E crescemos daí para a frente, mas ninguém nos livra das quedas. Aprendem-se passos e caminhos pela força de vontade. Perder completamente é cair no vazio tropeçando na vida de alma vaga, porque isso é viver pela metade. A minha paisagem é feita de pedra e nela me vou esculpindo com a força do que aprendo de todas as vezes que continuo a cair no chão.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Para além do espelho

Anabark, Meio Espelho (MAI2010)

Tudo o que o espelho deixou de ver, desapareceu para sempre, como estilhaços de vidro quebrado sem qulaquer utilidade ou lágrimas que ninguém vê nem enxuga. No espelho só as paredes ficaram e as manchas de sujidade que o tempo lhes vai acrescentando. As recordações envelhecem mais depressa que os sentimentos e a memória exacta das coisas, na sua dimensão plena, perde-se na distância que nos vai sobrando entre pormenores. Deitei fora coisas inúteis, ressentimento sobretudo. Tenho falta de espaço, quero guardar o beijo e o abraço que vivi, por inteiro, acima de tudo. O resto, porque me é inútil e me queima um buraco no peito, perdoo e arrumo num lugar longínquo. Não esqueço porque esquecer é não aprender e a vida é um movimento constante de querer saber o que nos falta. E falta-nos quase sempre tudo, incluindo a disponibilidade para entender o mundo para além do nosso umbigo.

sábado, 5 de maio de 2012

Anabark (original de U-Turn), Desvanecer (MAI2009)

Passei de fugida pelo quarto das recordações e roubei a cor das paredes e dos objectos que encontrei. Deixei tudo a preto e branco no mesmo sítio. Não desarrumei mais nem arrumei o que está desarrumado. Apaguei a luz e saí. Fecho a porta atrás de mim. Levo a cor comigo e os dias e as noites infinitas. A luz pertence-me, não se apagou em mim. O resto é escuridão que não é minha, que não sinto nem entendo. Onde o sol não se deixa entrar não existe cor e durará para sempre a falta de calor. Não entendo quem escolhe a rigidez do preto e branco. A minha exigência é outra, é ter na alma o infinito, sabendo que a verdade é uma zona cinzenta que cada um vive na sua própria versão.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Ruínas

Anabark, Fading, (MAI2010)

No espelho, aos pés da cama, desfilava um tempo que era infinito na alma de quem nele acreditava. Sem horas, sem noite nem dia, sem assimetrias, tudo ao mesmo tempo, a vida num só dia. Esse tempo passou, o espelho ainda lá está e a cama continua branca e no mesmo sítio. E o fantasma do passado pendurado nas paredes que testemunharam quem ali trouxe um grande amor, pouco a pouco, torna-se a casa em si, o chão desaparece e o tecto é um céu sem fim. Por detrás dos cortinados, a lembrança de um perfume que já foi ar em toda a casa. Dantes havia música num rádio antigo, mas hoje o silêncio é o vazio de quem chegou sozinho, desarrumou a cama para fingir que ali dormiu e a meio da noite partiu por entre a chuva. Devaneio, dirias tu se me ouvisses. Não, respondo-te eu, nada disso.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Da cama para a rua

Anabark.Once upon a time (MAI07)

Na casa da improvidência morou, por algum tempo, o Amor, alimentado pela condescendência e pela promessa de compromisso. O Amor, que deixou para trás tudo o que era seu por não poder trazer nada consigo, veio de vontade e com a vontade de ficar para sempre, e ali foi muito feliz enquanto, em tudo, foi condescendente. O mesmo Amor que, antes, tinha sido abandonado, subiu uma montanha para ali chegar e encontrou outra montanha quando lá chegou. Mas valia a pena, havia Amor e braços amplos e quentes que, apesar do medo, esperavam por si. Pouco tempo passou, e o Amor ali vivia a esticar braços complacentes até ficarem doridos de tanto os esticar. Um dia, o Amor baixou os braços para ver o que acontecia, á espera de ser reparado, confiante que os braços que tanto amava lhe chegariam quentes e fortes para não o deixar cair. E andou pela casa inteira, dias e meses a fio, e os braços que amava não se abriram nem aqueceram mas teimavam que sim, que amparavam e que eram mais seguros do que os braços do Amor. E o Amor não entendia, porque tinha frio e nenhum calor lhe vinha. E o Amor chorou baixinho, escondido e ás escuras, para que ninguém tivesse pena. E nunca deixou de acreditar. E os braços que amava, cada vez mais frios e envergonhados, foram empurrando para fora. E o Amor não entendia, porque amava muito, tudo, e chegava-lhe pouco, quase nada. Não deixou de amar, gritou para chamar a atenção, queria apenas que reparassem. Desacreditado adoeceu de tristeza e, no desespero, fechou-se na memória do que, ainda tão há pouco tempo, tinha sido. Ninguém veio por ele, por lá ficou esquecido. O Amor não entendeu quando o fim chegou sob ameaça. Um dia, sentado na sua parte da cama, sempre á espera de um abraço, um dedo esticado apontou-lhe a porta e, sem hesitar,  mandou-o sair.