quarta-feira, 31 de julho de 2013

Dia a dia

Wolfgang Tillmans

Desapareceu nas palavras que nunca ouviu. Desapareceu no tudo que calou. Desencontrou-se do que não deixou à espera e perdeu-se do que encontrou. Não partiu, não voltou. Desapareceu num tempo que não aproveitou. E os dias passam como têm de passar, feitos de passado e de presente, e desaparecem também. Tudo é tão frágil como a própria vida. E só a intensidade do sentir é força para segurar por inteiro, em vida e para além da morte.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Acreditar


Gabriel Benaim

"A intensidade com que se é esmagado não importa. De facto o que importa é a intensidade que nos resta depois de sermos esmagados."

 Gonçalo M. Tavares

domingo, 28 de julho de 2013

(es)correndo

Mia Minor

O relógio chegou mais depressa do que eu. Odiei os ponteiros, os carros, os caminhos. Tentei voar, mas não me cresceram asas quando foram precisas. Não sou um anjo na terra e o meu corpo, gota a gota, assim o confirma. Odiei o relógio, o Tempo e o desencontro. Porque cheguei atrasada aonde a minha vontade sempre esteve e permanece, nunca esgotada em mim.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Prova material

Ricardo Machado

5 segundos!... Que não chegaram a ser.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Em quem não sobra o perdão

 
Anton Okički

Sentou-se no seu canto à espera de envelhecer. E depressa envelheceu, mais depressa do que o normal. Cresceram-lhe cabelos brancos dentro da cabeça e o olhar foi ficando baço até que perdeu toda a luz que antes o transbordava. Deixou de ver, de falar e de sentir também. Ficou quieta no mesmo sítio até não lhe sobrar mais nada de juventude, como quem desiste da inquietude da vida e abraça a tranquilidade da morte por antecipação, incapaz de assumir o risco e o desconforto dos dias incertos. Envelheceu uma vida dentro da sua própria vida por opção. E enquanto vai desaparecendo de si mesma, segura de mão fechada ressentimento e o desperdício de acreditar que tem outra vida para viver. Olho-a à distância, tento chegar-lhe e caio sempre no chão, magoo-me. Já parti, por ela, vezes sem conta o coração.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Resumo

João Castilho, Linhas

A meio da noite, na escuridão de quase nada, havia, contudo, uma história maior interrompida. Mas nenhuma quis reparar. Deixaram-se morrer presas numa armadilha de teimosia, paralisadas e surdas, sem querer chegar a um abraço.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Sem lados

Sharon Johnstone

O Amor é como uma bola, é redondo, não tem lados. O amor não quer ter razão, quer dar-se e ser retribuído em partes iguais. O Amor não quer fazer braço-de-ferro com quem ama, só tem braços de ferro para abraçar. O amor é justo, não tem ângulos nem pontos de vista. O amor não divide, une quando está dividido. O Amor não compete por um lugar nem disputa o lugar que ocupa, nivela altos e baixos. O Amor não impõe nem se impõe. O Amor não se põe em bicos de pés para poder chegar. O Amor não se cala, fala mais alto do que  vozes desencontradas. O amor não é dois 'eus', é um 'nós' aprendido e guardado. O Amor não tem lados, é redondo como o brilho no olhar de quem o sente realmente incondicional.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Em falta...

Bertil Hansson. Red, 2010

Braços que carregam, que seguram sem cansar. Braços que não deixam cair e que apanham do chão se chegar a cair. Braços que não se viram de costas quando o frio lhes chega. Braços que, em dias do avesso, surpreendem e estremecem o corpo de quem amam. Braços que esticam até à alma para dissolver tempestades. Braços que abraçam simplesmente e secam lágrimas. Braços que esperam outros braços esticados e que, unidos, alcançam o inalcancável. Braços com a força de montanhas por quererem demasiado. Braços que são a força na fraqueza da ausência de palavras. E nesses braços, os abraços são tudo na alma em abandono, porque dizem pele na pele e debaixo dela 'estou aqui porque quero estar, porque tu és em mim todos os lugares no mundo'. Abraços que são Amor quando faltam as palavras.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Nem de um lado nem de outro

Nuno Borges

Dizes que não sabes mas afirmas-te quase sempre como se tivesses em ti todas as certezas do mundo. Porque te conheço para além do que 'não sabes' acho que não sabes porque tens medo de saber-te. Eu sei e sei-me. Procuro, não temo as minhas próprias perguntas, confio, duvido e revejo tudo o que aprendi. O que é conveniente não me serve, nunca me serviu. Tu não sabes do que estou a falar porque escolhes não querer saber. Mas eu conheço-te muito para além disso e sei que és mais do que afirmas e te conheces. O resto 'não sei, sei lá'... nem me interessa.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Dizem

Anabark, Auto-retrato [Out. 2012]

Procurei nos cantos, no chão da casa e até em cada rua por onde passei. A cabeça que perdi não voltei a encontrar. Não faz mal, não me faz falta. O essencial mora na alma, dizem...

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Chão de papel

S. Richardson, 'Balloon'

Da festa ficavam restos das horas em que o tempo se perdia sem dar por isso. Passos de despedida tropeçavam em fotografias do chão que, antes, era de dança e que, agora, só as partículas de pó colorido deixavam adivinhar essa vida anterior. Agora o chão desfazia-se ao som da voz como se as palavras fossem pedras arremessadas contra montras de papel e tudo nele se desequilibrava e caia, a música, as coisas, as horas, as memórias. Nos buracos abertos formou-se um abismo do que ficava por dizer e nesse vazio foram-se arrumando aos poucos... até que o silêncio as engoliu para sempre na indiferença.

sábado, 13 de julho de 2013

Sem música de fundo

Michael Van Ofen

Às vezes as palavras não nos encontram o tempo nem o tom certo. Às vezes ficamos perdidos na voz que não sabe dizer, nem talvez sentir, o que por dentro nos estremece. Às vezes somos apenas silêncio como música de fundo. E no silêncio deixamos de ser mas não morremos. Perdemos sem ter encontrado, acreditamos tudo e nada ao mesmo tempo e ficamos surdos também. E não são as palavras que nos salvam mas a honestidade que as trespassa e que deixamos chegar ao coração. Porque há coisas que, sentindo, não dizemos por não saber dizê-las correctamente. Escolhemos o silêncio. Calamos tantas vezes o que sentimos porque gostaríamos de o dizer com a eloquência e o ritmo das batidas de coração. E outras vezes calamos, porque são surdos os ouvidos que não sentem.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A importância de 'nunca'

Seth Casteel

Nenhuma palavra é mais injusta do que a palavra 'nunca' porque ela obriga a um quase juramento e compromisso imediatos que, amanhã, poderemos não conseguir cumprir, porque o mundo mudou de lugar, porque nós mudámos em nós mesmos, porque deixou de fazer sentido, por milhares de razões. Mas existe, em mim, um 'nunca' que é uma verdade absoluta, quando nem o coração nem a alma sabem mentir: o que nunca fiz! Esse 'nunca', mesmo que ninguém o acredite, e por muito que me acusem do contrário, vale em mim a maior certeza de mim mesma, porque essa inocência me pertence de corpo e alma. Mesmo que me afogue nela.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Cativa


Tocou-lhe suavemente a pele e a marca dos dedos ficou lá. Ficou cativa, como quem fica preso na alma por um fio de uma força invencível, que ninguém se atreve a desenrolar. Os dedos, as mãos, o corpo desapareceram, mas a pele tocada relembrará sempre o doce enredo de quem lhe tocou, para além do corpo, a alma.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Cinzento

Werner Branz

- Uma memória vaga da última noite que até podia ser a noite passada! - disse de voz esvaziada no tom, quase cinzenta, e virou as costas. O quarto encheu-se de nevoeiro e os olhos, perdidos nessa distância, não voltaram a encontrar-se no que alguma vez tiveram.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

O poder das palavras

Web

Há palavras que caem no chão porque as ouvimos numa linguagem que não somos capazes de entender...

sábado, 6 de julho de 2013

Ar de lume

Mark Mawson

À noite, ao entrar no quarto, cheirou-lhe a incêndio e não havia nada a arder. Desfez a cama, abriu a janela e esperou que a lua entrasse. Não adormeceu nem tentou dormir. Viu as horas passar e os dias também. A lua deixou de deixar ver-se da janela aberta e ar de lume espalhou-se por toda a casa. E não há fogo nem vontade de dormir.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Do céu para debaixo do chão

Robert Vizzini

Foi num filme antigo, em technicolor, que elas se desencontraram, a olhar para cima, não para o céu mas para o topo do arranha-céus. Muito tempo passou, o filme envelheceu e elas perderam-se para sempre na esquina oposta da mesma cidade. Sobreviveu-lhes o arranha-céus e nem a saudade que as encontrou é livre de ser vivida, porque agora são enredo de cinema negro: os polícias são ladrões e não há heróis numa história de passado contada em voz passiva.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Águas paradas

Tito Mouraz

Já foi mar, um oceano sem fim por onde toda a fé do mundo nos navegava. Já foi esse azul infinito sem estações do ano onde o céu, sempre iluminado, se espelhava. Já foi uma vontade mais forte do que, no mar e na terra, todas as tempestades. E foi por vezes cabo das tormentas mas sempre da boa esperança, a noite e o dia como tudo na vida é. Foi o que pode ser e o que o verão bruscamente interrompeu pelo que escapou aos sentidos. De todo o mar que o tempo não cumpriu, ficou um buraco de pedra sobreposta em camadas. E, no fundo, um lago de lágrimas, onde a alma deserta lutou para não se afogar. Já foi mar onde, hoje, são as águas paradas do naufrágio do amor.