domingo, 31 de julho de 2011

Conta-rotações

John Hamers, 2011


E o tempo ultrapassa-me e de nada adianta correr contra ele. Mais forte do que o vento forte, o tempo ultrapassa tudo, sonho e realidade. De tudo quanto fui, quardo o que posso num baú imaginário, como quem segura o que sente por dentro como alma. O que sou, construo todos os dias como quem quer muito aprender a melhorar. Do que serei amanhã e nos dias por vir só posso trabalhar a ideia do que gostaria que fosse, como quem sonha uma bola colorida onde cabem todos os sonhos do mundo e o mundo também. Mas o tempo corre mais depressa do que a vontade e do que sonho. O tempo corre mais depressa do que a vida. E eu, como toda a gente, sou apenas um esboço de inúmeras possibilidades. Sou sonho e coisas concretas, memórias e ideias, passado, presente e futuro. E sou também o tempo que me ultrapassa quando me deixo ficar imóvel nas horas a que nada acrescento para além do meu petulante aborrecimento e falta de assunto. E sou também a vida que quer o tempo por inteiro, sem desperdício. E quero encontrar-me e acertar o passo, como quem acredita que não há tempo a perder. Tem de ser o que estiver para ser e tem de ser agora.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Alegoria

Anabark, Debaixo do chão [JUN2008]

Havia um mundo que eu desconhecia e que respirava sem eu alguma vez lá ter chegado. Sob o chão havia cores que o sol nunca encontrou e objectos iluminados pela luz azul dos lugares que não se conhecem e que deslumbram pelo que não conseguimos alcançar. Debaixo do chão tudo era de outra cor e o brilho de todos os objectos eram um sol, constante, quente, que chegava a todo o lado. Deixei-me ficar por ali, viajando entre estações do ano sem inverno nem folhas mortas de outono. E nesse tempo que não passava, o mundo cá fora envelheceu, fustigado pelo vento e pela falta de luz. Já não vivo debaixo de chão, voltei ao meu mundo natural. Trouxe nos bolsos um bocadinho de azul, do tom que ilumina a vontade de descobrir o tempo que aqui corre apressado, debaixo de sol ou chuva, vivo, pulsante... real.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Transparência

Kanya Hanklang, World of Ice 1

Posso, enfim, perceber, na translucidez do gelo, o tempo perdido que o Inverno nos obriga a agasalhar. Posso, enfim, distinguir o vento frio que, de forma insidiosa, nesse tempo, me acomodou em casa. Posso, então, compreender por inteiro o calor de um abraço e o aconchego de um beijo quando, por dentro, um deserto a perder de vista cresce em tempestades de areia. Posso, agora, compreender tudo e a importância de encontrar o tempo na consciência que tenho da sua finitude.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Intransmissível

Katjas, Every Book Tells a Story, 2011

Procura-se nos livros doutrinas e opiniões que nos expliquem e nos confirmem decisões e, por muito que se procure, nada nos define completamente porque somos únicos no ser e no estar. Porque aquilo que sentimos, e a forma como o sentimos, só nós sabemos e falharemos sempre em definir sem equívocos. Encontramos, por certo, aproximações e nelas embarcamos á falta de melhor porto seguro. Mas não somos nós exactamente e é preciso perceber essa margem de diferença porque é esse intervalo que nos torna originais e nos distingue entre nós. Por muito útil que nos fosse, a verdade é que não existem manuais de instruções que se nos apliquem, porque somos peças únicas e a universalidade só nos toca docemente, não nos compromete numa resposta padrão de verdade obrigatória para todos. Seria tão confortável que os livros nos justificassem fraquezas de alma e faltas de carácter! Mas não há forma de explicar a nossa própria consciência. Nos livros sábios, como na vida real, só encontraremos pontos de vista, porque nada mais existe do que pontos de vista. Cada um sabe de si, ou não sabe e queria saber... mas isso não vem nos livros.

terça-feira, 19 de julho de 2011

O que se perde

David R. Yee, Teddy On Bryant Lake

O que é nosso e deixamos de ter, nunca se perde realmente, porque a nós retorna naturalmente. O que nos pertence por lei do universo mais forte do que a própria vida, perdendo-se, voltamos a encontrar. O Amor só existe quando é nosso. O que é meu realmente nunca de mim parte e, se partir e não voltar não tem de ser, não é meu porque não é nosso. Tudo o que não tenho porque perdi completamente nunca foi meu e, não sendo meu por inteiro, não me vai voltar. Só quero aquilo que me procura livremente e me encontra no que me reconhece seu também. O que não me escolhe por força de um querer livre e absoluto nunca será meu. Dispenso tudo o que passa por mim sem vontade de ficar.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Vaguear

Bogdan Szadowski, 2008

Fechar os olhos e andar ao mesmo tempo. Apetece-me. Vaguear sem saber se torto ou a direito, inconsequentemente. Sem razão, sem destino e sem propósito, apenas andar por aí, por aqui e por além também. De olhos fechados como um recém-nascido que descobre as sombras como o mundo a tomar forma. Apetece-me não saber mais do que isso, ou menos talvez se for preciso. Apetece-me andar, sem encontrar destino, para não morrer num final de linha qualquer e poder continuar para além do razoável. Vaguear em mim mesma, ser caminho e vontade de caminhar ao mesmo tempo. Apetece-me partir descalça, sem as botas que a vida me calçou, e encontrar pelo caminho uma forma de andar sem por os pés na terra e não cair no impossível. Apetece-me desencontrar o tempo, as regras e a opinião dos outros. Apetece-me fechar os olhos, dar um passo em frente, e seguir o meu caminho, seja ele qual for. Manter-me de pé, como as árvores na sua inabalável vontade de tocar o céu... ou crescer, simplesmente, apoiada na ideia de Deus, antes, durante e depois do fim de tudo.  

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Dias atlânticos

 Anabark, Estrelas, JUL2011

E junto ao chão havia estrelas, nascidas de terra grávida de esperança em cada Primavera. E havia debaixo do sol, e da chuva também, a vontade de renascer uma e outra vez, muitas vezes, eternamente. E todos os charcos de água eram lagos que davam de beber aos pássaros e deixavam um lençol de azul à beira do caminho. E nada era de pedra, tudo era hipótese de vida. E eu ali chegava como se o tempo não fosse tempo, fosse apenas o infinito, e ali ficava suspensa como as estrelas feitas de flores miudinhas ao sabor do vento. Debaixo dos meus pés, a terra desaparecia pouco a pouco e eu assim me perdia entre o estar e o ser. E depois do tempo bom, caíam as folhas das árvores e as flores estreladas secavam e acabavam por fugir com o vento, numa pressa precipitada. E eu ali ficava, instalada no Outono como minha casa temporária. E o Inverno chegava num empurrão de frio a curvar-me o corpo ao encontro de calor. E mal o corpo se aquecia, a chuva e o frio partiam timidamente de mãos dadas e a Primavera entrava primeiro num pedaço de pele, depois pela alma de dentro para fora para dentro, como quem, descuidamente, adormece por umas horas e depois acorda mais renovado. E tudo volta a estar no lugar, renascem, do chão para o céu, as  flores feitas estrelas e os pássaros trazem nas penas a cor que, durante uns tempos, se escondeu do atlântico dos dias em que tudo era mais bonito por causa do Amor.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Memórias dos vitrais

Anabark, Catedral, JUN2011

Não há muito tempo, havia uma catedral de luz em todas as ruas por onde eu passava. Não há muito, todas as casas dessas ruas eram altas e luminosas e nunca chovia nem se ouvia o vento frio que estremece os edifícios altos. Tudo era abrigado, acolhedor, não há muito tempo. O mundo não mudou de lugar, mas as ruas tornaram-se mais estreitas, sombrias e irregulares. As catedrais desapareceram, só ficaram casas devolutas, sem telhado e janelas abertas de par em par. Continuo a passar pelos mesmos sítios, passeando a memória das catedrais. De vez em quando, os pássaros que habitavam esses lugares descem até aos passeios e contam-me histórias, nem falsas nem verdadeiras, do tempo das catedrais. E eu fico a ouvir, distraída pela luz do céu que transportam nas asas. Quando anoitece, voo com eles para lá das nuvens, ao encontro de um tempo diferente que me devolve a ideia de infinito sem a fragilidade dos vitrais dos templos.