quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Estrelando

Miguel Furlock, The Idea Of Angels - take #218 (2008)

Por onde andam as estrelas quando não as vejo? Para quem brilham quando se escondem dos meus olhos, tornando a noite mais silenciosa e fria pela falta de luz? Por onde anda essa luz universal quando foge ao particular que a descreve em poemas inacabados? A noite, que lá fora chega, encosta-se a mim de mansinho e faz-me a mesma pergunta como eu tivesse alguma resposta para dar. Nada sei. Encolho os ombros e deixo-me estar. Algures por aí, outros infinitos particulares festejam a luz das estrelas que não brilham aqui. Eu só sei da luz que seguro na alma como princípio do mundo, sem noite nem dia, sem medo nem fundo.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Febre

Queno, Kamouraska, Quebec (2010)

Hoje não me encontro. Deixo-me ficar sossegada á espera que os olhos adormeçam, imitando o corpo dorido e dormente. Hoje não encontro nada em mim para além da febre que me impede de dormir. Imagino coisas sem sentido e essas coisas sem sentido tomam conta de mim. Deixo de estar aqui, descubro-me em sítios improváveis, em conversas impossíveis e nada é real, para além do corpo demasiado quente, invadido por histórias febris que não domino. Hoje não me encontro na minha vida de todos os dias. Hoje procuro um fio condutor e digo coisas sem nexo com a lógica de quem procura água num deserto árido. Hoje adormeço em miragens que me invento e que não distingo entre si. Não dou conta de mim, ardo em febre e queima-me o coração que seguro nas mãos como quem salva coisas de um enorme fogo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Por fazer

Peter Sussex Ship in Blue, 2008

A mais dramática inconsciência no ser humano é não ter noção de que vivemos em contagem decrescente e que, um dia, que pode muito bem ser amanhã ou daqui a bocadinho, chegaremos ao fim e tudo o que não acontecemos e que esteve ao nosso alcance cavará mais fundo, na alma, o buraco das coisas falhadas. Tudo o que adiámos, falhámos; tudo o que tocámos e não agarrámos, falhámos; o quanto amámos e não confessámos, falhámos. O tempo não volta atrás para remediar a alma rasgada pelo arrependimento do quanto não ousámos. Perdemos coisas, e pessoas também. Quando for tarde demais, já não vamos a tempo de salvar e acabaremos mais pobres e mais sós. Perdemos tempo por tudo e por nada e, muitas vezes, não chegamos a tempo de dizer a quem amamos ‘Gosto tanto de ti!’. E assim perdemos o mundo e as pessoas de quem gostamos e que fazem a diferença na nossa vida. E perdemo-nos também a nós por não termos dado tempo ao abraço que ficou por dar.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Vagar

Anabark, Undercover (FEV2012)

Desencontro o passo e avanço sem olhar o chão. Ergo os olhos em busca da paisagem que perdi de vista numa sala fechada pintada de noite e de silêncio. Encontro a cor dos olhos nos móveis em meu redor. Nas paredes escrevo letras de canções que conheço de cor e nelas penduro o tempo que dispo e visto conforme os dias. Às vezes danço nas horas vagas, outras vezes tropeço nelas desinspirada. Procuro por toda a casa o lugar secreto onde guardei a música e encontro histórias que nunca ouvi nem li mas que conheço bem. Escrevo nas paredes que restam sem canções o que alma não sabe cantar e, por falta de voz eloquente, tiro fotografias a palavras em movimento que, de vez quando, deixo sair pela janela para respirarem por mim.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Viagem no pormenor

Rob Oele, See Buoys #4, 2010

Há dias em que recupero o pormenor e viajo por linhas que não se vêem até a um centro imaginário de coisas que não estão lá à primeira vista. E reparo nos pormenores com a precisão e a intensidade de um beijo, querendo aprender e viver tudo no espaço de tempo desse instante que sentimos dentro como infinito. Penso muitas vezes na imagem que nos fica no segundo que antecede um beijo apaixonado, antes de fecharmos os olhos orientados pela força do desejo. Nesses dias, o tempo corre e não sei bem como e nem por onde passa. Sei apenas a viagem que me percorre da alma ao corpo, e nela me perco como quem beija apaixonadamente lábios desejados e correspondidos. E nela sonho por todos os amantes que se acreditam eternamente.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Negra a noite

Anabark, Pela Noite (FEV2012)

Um incómodo, por certo, as perguntas impacientes, mas já não me importo com isso. Incomodam-me, sim, ruas escuras, portas fechadas e frases como 'Nunca mais!', pelo rasto de morte consentida que deixam à solta. Só na alta noite percebemos tragédia da falta de luz. No tempo bom e fixo, as cores são estrelas permanentes que nos distraem a visão, nenhum chão nos atrapalha quando a luz nos segura como um beijo que nunca chega ao fim. À luz do dia sobramos em coragem, crescemos o que nos falta para chegar ao que acreditamos possível e, às vezes, ao impossível. A luz abraça-nos em audácia e o resto fica por nossa conta. À noite escurecemos. Enfraquece o querer e a sombra invade a vontade como uma mancha de bolor. Foge-nos a certeza do que antes era cor. E todas as ruas são o perigo da dúvida e do medo, porque nenhum caminho é seguro quando se perde a coragem e quando as portas fechadas condenam à morte o que nos fica do lado de fora. Raros aqueles que se seguram firmes, indiferentes à escuridão.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Pistas

Anabark, Evidence (FEV2012)

A vida, essa coisa indefinida que todos queremos controlar ao sabor da nossa vontade e capricho, acontece como um carrossel de manchas indistintas, sinais que, muitas vezes, não sabemos que o são e que, distraídos, passamos por eles alheios ao seu sentido e causalidade. Esta fluidez codificada, que não alcançamos e que não podemos evitar, segue a vontade do universo, imenso e sábio nos seus próprios desígnios. Tropeçamos no acaso que não é acaso e seguimos em frente com indiferença, como se as coincidências existissem e houvesse alguma lógica em existirem. Ignoramos uma lei maior pela inconveniência de acreditar que não somos senhores do nosso próprio destino,  perdemos pistas pelo caminho e chegamo-nos pela metade. No que não lemos por apatia ou negligência deixamos de acontecer de forma inteira e ficamos aquém da nossa própria vida, do sentido pleno da existência. Porque nada acontece por acaso.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Árvores de sombra

Anabark, Impressão de sol (JAN2012)

No muro ficam pendurados quadros pintados pelo sol que, teimoso, espreita, através de um céu de inverno. No gelo das mãos seguro o princípio de luz que ali acontece efémero. De mãos geladas agarro a ideia de calor que veste de vida a parede pelo contraste de luz e sombra. E chego a sentir-me aconchegada na contemplação de um sol que não me aquece apenas me promete o corpo quente. Do quadro pendurado pelo sol no muro guardo a ideia, como agasalho sobre pele despida, do que antes foi jardim fértil de primavera e que agora é terra dura e fria. As flores desapareceram, só resta o muro de vez em quando visitado por passáros que me voltam sempre como um regresso a casa. E eu acredito no bater de asas e na promessa de flores que trazem no bico e que poisam sobre a erva daninha.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Enquanto anoitece

Niki Conolly, Table Dance Series, 2007

Enquanto a pouca luz dança com o seu próprio reflexo num espelho velho, converso com o fim do dia sobre coisas impossíveis que ficaram por fazer. Por vezes chego a convencer-me que tudo posso, basta ousar, aqueles que ousam estão mais perto de ganhar. Outras vezes, baixo os braços, encolho os ombros, respiro fundo e desisto. Abandono o que não me espera e os encontros impossíveis. Não ouso para além do silêncio, porque para além do silêncio o nada é ensurdecedor. Abraço a noite com o que me fica dos dias. Tudo quanto existo ponho em força nesse abraço que amanhã me acordará a vontade de acontecer novamente.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Linha de água

Queno, Lac Nominingue - Quebec, 2011

Afogo os pés cansados de sonhar caminhos e de, passo a passo, percorrê-los na imaginação, detrás para a frente e ao contrário. Descanso e respiro o ar que nunca me chega porque o ar é raro neste sítio alto onde os sonhos nunca perdem asas. No céu, estranho a ausência de estrelas, porque sei que existem e já as vi por aqui e nos meus olhos guardei-lhes a luz que nunca chega ao fim. Não preciso de ver, guio-me por instinto. Encontro tempo para ficar suspensa numa ou noutra ideia à espera de precisão. Sentada neste não-lugar onde o universo inteiro acontece devagar em mim, chego mais perto da essência das coisas que o são porque eu as penso, de outro modo não existiriam. Ter alma é uma extravagância, alimentá-la é um luxo. Quando olho em meu redor as ruas estão desertas de pessoas, embora cheias de gente indistinta. Deixo-me à beira da água, os passos que dou no mar não me custam chão. Troco terra sonâmbula por mar adentro para chegar mais perto do que me pressinto.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Perder o chão

Andrei Tarkovsky, Ivan's Childhood (1962)


"Num beijo saberás tudo aquilo que tenho calado."

Pablo Neruda

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Em abstracto

Anabark, Naked Trees in the Mist [DEZ2011]

Pode ser que a incerteza da sorte, um dia, não o seja e que o abstracto das coisas deixe de o ser também. Pode ser que o destino exista e, acontecendo, se desfaça o mistério. Pode ser que a sorte e a incerteza combinados sejam também luz debaixo de nevoeiro. Pode ser tudo isto ou apenas o mito de uma ideia. Por ser que a sorte não exista e o destino também não. Porque o abstracto é uma construção que nos segura no desespero da incerteza. Porque precisamos do mistério, do encantamento de não saber tudo e de sonhar o desconhecido. Precisamos de descobrir eternamente. Uma alma apaixonada tudo pode, porque acredita e mantém a fé. O concreto faz-se de conquistas, daquilo que se constrói pela paixão que, um dia, se tornou Amor.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Folhas caídas

Anabark, Espelho da Noite (FEV2012)

No relógio passam horas de silêncio. Não as conto. Encontro outras formas de viver o tempo que não passam pelo relógio, porque esse mente, porque nem sempre pouco é realmente pouco e muito pode muito bem nunca chegar a ser suficiente. Não existem prazos, tempos definidos, adequados ao que sentimos dentro ou deixamos de sentir. Um coração parado vive as horas no tempo exacto que elas duram. O coração que sente vive a passagem do tempo pelo número de folhas de árvore caídas no chão, sopradas pelo vento, e sonha as horas que voam em cada folha como uma promessa de primavera. O coração que sente não adormece no silêncio da noite nem na ausência dos dias. Por fora o relógio envelhece-me nas voltas que dá sem fim. Mas não as conto. Encontro outras formas de vida a que o tempo não pode planear nem princípio, nem meio nem fim. A vida que me anima é o infinito que me habita, com sentido, o coração.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O invisível

Anabark / Tiza Gonçalves, Self-portrait, (JAN2012)

Não percebo. Nem vale a pena pensar e racionalizar o que sinto que pareço que sou. Serei isso e mais certamente, e esse certamente que sei que sou nunca o saberei exactamente. Não percebo. Não percebo o que me percebem. Percebo o que sinto e o que sinto define-me em parte. O resto de mim desconheço, o que os outros me sentêm não alcanço completamente. Não o serei exactamente mas a impressão construída não controlo, nem a ela sou isenta eu sei, existe fora de mim no que me inventam e me percebem também. Sou a obra e o rascunho ao mesmo tempo de um projecto para sempre inacabado. Não percebo o que me sentem. Sei o que sinto e sinto o que sou em mim mesma de forma inteira. Nunca serei a fantasia do que os outros pensam que sou, porque sou apenas aquilo em que me encontro dentro sem equívoco e sem a pressão da expectativa do mundo.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Ao lado

José Paulo Andrade, More red and green

Somos o que somos, o que aprendemos e o que nos acrescentamos todos os dias,  mas também o que não somos, ou a incapacidade de ser o que nos projectamos e que gostaríamos de cumprir. Somos também o que falhamos e só uma inconsciência adolescente nos distraí dessa condição inevitável. De resto, vagueamos no desassossego do que não chegamos a ser e do que perdemos por não ter sido suficientes. Talvez porque nunca deixamos de querer o que não somos. Talvez porque aquilo que conseguimos, aquilo em que nos satisfazemos nos seja pouco e, por vezes, por aproximação. Ou porque queremos pouco o que temos, ou porque tendo o que queremos não o amamos. Porque o que amámos e perdemos, seguimos a amar o que, antes, não reparámos por inteiro, aquilo que não amámos completamente apenas o pensávamos como uma emoção. Porque o coração parado não sente, pensa e perde por omissão. Somos desejo infinito e erros também. E, às vezes, aprendemos na perda o quanto não somos.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O dia em que a terra parou

Mitch Dobrowner, Hiprock Storm, Navajo Nation, NM, 2008

Num outro tempo, num outro mundo, hoje foi o dia!...