terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Prova de vida

Ann LT, Sprayed 5

Inútil seria procurar sentido na passagem do tempo, porque o tempo é abstracto e não será o artifício do calendário na métrica dos dias que traduz a dimensão do vivido. Prefiro a história das manchas na parede que, silenciosamente, se vai alterando no tom e aumentando nos factos, até deixar de ser pertinente considerá-la à parte da casa. Prefiro interpretar o pó que pelos cantos se acumula ou a cinza dos cigarros espalhados pelo chão. Vestígios de vida em lugar de abstracções. Porque muitas vidas se vivem no mesmo tempo. Porque o tempo é irrelevante nas vidas que nos acontecem por dentro. E porque às vezes não estamos por onde passamos. Passa-se pelo tempo mas nele nunca ficamos.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Segundo a segundo

Anabark, Sem Cabeça (JAN2012)

O espelho reflecte o que falha na expressão do pensamento. Não a realidade em si, mas um aspecto do real mais rápido do que o pensamento. Porque o tempo nos acrescenta ou nos diminui, somos apenas por um segundo essa imagem que o espelho nos retrata. Não somos mais do que uma soma de brevidades em que a toda a hora nos acontecemos diferentemente e de forma irrepetível. Não existem dois segundos iguais, não existem segundas oportunidades. Tudo o que acontece é uma estreia absoluta, mesmo que acreditemos o contrário. Estreamos cada minuto que passa com o que transitamos do minuto anterior, somos diferentes em cada instante porque o tempo será sempre outro. Não nos repetimos, há uma espécie de velhice que nos assiste segundo a segundo. Tudo existe como uma oportunidade única.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Alma de rede

J. Le Montagner, Ice

E se, na vida, nós temos um grande sonho e a ele faltamos, que vida acontece no vazio? E se, na vida, descobrimos um propósito fundamental e ele nos falha de repente, que diferença na vida nos faz a deriva? E se, na vida, encontramos o sentido essencial e o evitamos por inépcia, que vida é essa sem corpo nem chão? Porque a alma humana é vítima da dor e a dor da alma ninguém sabe como se evita. Sofre-se o desconforto e o incómodo de estarmos vivos sem sonho, sem propósito e sem sentido. A dor insidiosa de quem estando vivo não se dá conta, faz mirrar a alma e há até quem morra cuidando que vive mais do que o resto do mundo. Aqueles que se escolhem a si mesmos acima de qualquer suspeita perderam a imaginação e o sonho. Porque onde não existe margem para uma ou outra pergunta, o chão é gelo que torna a alma fria, deserta e ausente do mundo. Esta incapacidade de ser não é vida. A inconsciência é um perigo maior que muitos abraçam pela dor que os estremece à noite, perdidos no seu próprio vazio.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Coisas certas de incerteza

Anabark, Sombras no Muro Series #1 (JAN2012)

No muro desfilam horas que se tornam dias crescidos e nos negam coisas certas, coisas que nos devolvem sombra como a única prova de que o sol é permanente, indiferente ao poente e ao amanhecer. O que acontece nos intervalos da negação é o ritmo da vida, o nosso tempo pessoal. O que agora existe mais logo será sombra e, amanhã, voltará como realidade sem que o muro, que continuará no mesmo lugar, sirva de testemunho. O resto é a vida que nos cumpre e nos deixa, como luz que nos morre à noite e nos acorda de manhã e uma nova hipótese de ser e encontrar o mundo. E se a vida é  uma incerteza, o sonho dá-nos coisas certas porque a imaginação é tudo e sonhando temos o sol, a lua e toda a luz que pode haver. E o imenso absurdo de sonhar o impossível derruba muros com a força da fé. Crescemos mais pelo esforço dessa teimosia do que pelo braço da razão.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Escrito na areia

Chester Michalik, Figure, 1971

Encontrei-te a custo numa ideia antiga de infinito e dou-me conta de que o tempo traz outro tempo atrás e que não existem horas estanques nem momentos fixos, mas instantes em que as ideias se cumprem e depois se desmaterializam. No que me vou perdendo do passado encontro o presente em alta definição. Não se cumpriu a ideia primordial senão no seu esboço e numa promessa de corpo suficiente para resistir e viver para além da areia dos dias. Guardo perto amores antigos sem o tempo voltar trás, porque eles e eu escolhemos ficar sem tempo. Porque é mais o que nos une do que o que nos separa ou, simplesmente, porque abraçamos o que nos ficou sem condições. Não encontro nada de ti, vives ausente e livre do passado. Não seguro sequer a ideia clara do que te fui e que só, muito a custo, consigo definir. Na ideia antiga encontrei-te algo que nunca foste a não ser no poema em que te construí.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Epílogo

José Paulo Andrade, The nail head, 2008

Não havia mais mar por navegar, apenas o desafio constante das ondas. Não havida mais mar desconhecido, apenas o sobressalto das vagas e o vento de encontro ao navio. Não havia mais longe por descobrir, apenas a teimosia de resistir ao frio. Não havia mais fundo do mar sem restos de tempestade, apenas o sonho de um tesouro, nunca encontrado, sem idade. Não havia mais pedaço de vela por rasgar, apenas a força de braços para seguir adiante para além dos destroços. Não havia mais do que a cor que vesti por dentro entre as sobras naufragadas do que foi um barco, espalhadas pela praia. Nem tempo nem vento nem palavras, apenas o que pintei na alma como infinito.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Era uma vez

J. Le Montagner, Winter Bench

Num reino muito distante...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Arrecadação

Anabark, Espreitar (JAN2010)

Guardo tudo o que vejo e sinto na alma como se parte de mim soubesse que o mundo que conheço acaba amanhã ou no dia a seguir. Guardo quase tudo de forma arrumada, mas há dias em que me faltam horas ou, se calhar, acordo tarde e, nesses dias, deixo cair partes sem dar conta da dasarrumação que me fica nos intervalos de cada passo para o dia seguinte. E a parte de mim que teima num fim do mundo eminente estremece em sobressalto e recomeça, por onde pode, a juntar o disperso espalhado em meu redor. E recolho no que encontro outros sentidos, outras lógicas de arrumação. Na alma mantenho a calma de saber onde estou e, embora o tempo me seja cada vez mais curto e pouco para me guardar em tudo quanto me abriga a existência, reconheço útil o esforço de aprender e guardar o que vou vivendo. Tudo quanto conheço terá fim. Até mesmo a alma, engrandecida por tudo quanto aprende e segura, um dia acordará exausta e perdida na imensidão acumulada. Porque guardo tudo, não esqueço nada. Não me abandono de sentido nem de propósito, mesmo quando acordo cansada das noites em que teimo não dormir para ter a certeza de que, no dia seguinte, o mundo amanhece para nova hipótese de vida.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Elasticidade

Marcel Duchamp, Mile Of String (1942)

Desde que comecei a pensar a sério sobre as coisas, o mundo mudou de tamanho e perdeu alguma cor. O pormenor tornou-se um profundo embaraço numa imensa teia de pensamentos cada vez mais densos e distantes do resto do mundo. Aqui e ali reparo na inutilidade do esforço da explicação. De nada vale querer a nitidez do inexplicável, porque ela não existe senão na formulação do problema isolado da emoção. E pensar a sério sobre as coisas é render-me ao constrangimento de procurar a ponta de um novelo imaginário de infinitas questões possíveis, umas reais, outras fingidas, outras ainda invisíveis. Na confusão de sentidos relativos que atribuímos às coisas, tropeçamos em empecilhos desarrumados em nós mesmos, pela nossa condição humana. O que perdemos em inocência prende-nos na teia como vítimas da nossa própria construção do mundo. E deixamos acontecer o limite da nossa própria elasticidade até rasgar. Depois disso o retorno a um corpo inteiro é implausível, é nada mais do que um exercício do espírito especulativo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sobressalto

Anabark, Árvore Vermelha (Natal 2011)


Tudo de novo, tudo ao contrário. Tudo diferente. Outro tempo, outro mundo, outra gente. Um universo inteiro de coisas sobrepostas que me espreitam da janela como ruídos de todas as ruas do mundo. Outra realidade me acorda para além das horas indecisas em que adormeci no silêncio incómodo das noites desertas do Inverno. Espera-me o entusiasmo pelo dia que vai chegar. Acendem-me milhões de estrelas cintilantes que coleccionei durante a madrugada. Desassossega-me o tempo ou a ideia de que ele se esgota e não me cumpro, deixei de acordar tarde para me chegar a horas. Abro uma gaveta de ideias claras sobre as coisas que me importam e o que eu importo no mundo de quem me estima. Quero viajar no tanto que sinto e que ainda não vivi.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Boato

Anabark, Debaixo de olho (JAN2012)

Corre o boato de que os animais vão tomar conta do mundo para salvar-lhe o pouco que sobra para salvar. Corre o boato de que estamos a ser observados à milhares de anos e que falhámos em todas as dimensões. Corre o boato de que o nosso tempo se esgotou e que temos, para bem de todos, de nos afastar e aprender o muito que nos falta para voltarmos a ser de confiança. Corre o boato de que as nossas boas intenções não chegam para coisa nenhuma quando nos falta a bondade natural de sabermos partilhar. Corre o boato de que todos os animais do mundo, domésticos e selvagens, vão resgatar o planeta das nossas mãos descuidadas e criminosas e governá-lo em nosso lugar. Ontem, de madrugada, a gata que vive em minha casa e os gatos de ninguém, que as ruas por onde passo abrigam, contaram-me que os animais são justos, embora de nós nunca tivessem aprendido um gesto misericordioso. Seremos tratados com clemência, embora saibamos que não merecemos esse respeito.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Matéria

Anabark, Geometria Obscura (JAN2012)

Tudo muda, tudo é relativo, o próprio universo é parte de uma infinidade de universos, como se o todo, afinal, não representasse nada ou apenas a ideia de um acto de criação contínuo. No universo não existe um centro mas múltiplos pontos de expansão. Não há um centro porque não existe um limite. O espaço é a geometria do universo. As mudanças no tamanho ou na forma do espaço acontecem por causa do movimento da matéria e da energia no universo. Somos nós, a matéria, que muda na sua densidade e o universo transforma-se. E ainda que o sol permaneça no mesmo sítio, não é único e, como tudo o que é matéria, tem a sua morte anunciada, porque a matéria nasce, vive e morre, para renascer, reviver e tornar a morrer, tal como nós, pela desagregação de energia, já que nada se cria e nada se destrói, tudo se transforma, sempre. E ainda que cada transformação implique uma perda, um consumo, um desgaste, um atrito e um esforço de superação, ficar no mesmo sítio é morrer, porque o movimento é a essência da substância. Importa, e muito, deixar que o sol nos acenda a dança dos átomos e nos renove continuamente a velocidade de ser.