Anabark - Luz e Nevoeiro (NOV06)
"Foram os dias de ouro dos meus trinta e três anos, que eu julgava então – e ela também – próximos do fim, porque deslizávamos ambos sobre tapetes de risco. Já nem sei bem como me apareceu, a pedir conselhos, a falar-me dos meus quadros, com poemas nas mãos que desafiavam todas as regras da vida e da arte. Tinha – e de começo assustei-me – apenas dezassete anos e toda ela brilhava de confiança em si, de insubmissão, da ânsia de tudo ler, tocar e conhecer. Sentia-se que a Faculdade onde acabava de entrar seria apenas para ela o patamar de um espaço mais vasto da descoberta..." (*)
...Os dezasseis anos de diferença que nos separavam diluíam-se, de um lado e do outro, no prazer de olhar tudo à nossa volta pela primeira vez. Eu a descobrir o passado, ela a investigar o futuro. A sedução de ganhar tempo ao tempo embrulhava-me todas as noites no sonho de acordar mais depressa, para assistir à sua juventude irrequieta queimar-me a pele ao entrar-me por entre os dias. Não me lembro da primeira vez que ela olhou para mim. Lembro-me sim, de dar por mim a procurar-lhe o riso, a motivar-lhe o entusiasmo nesta ou naquela ideia ou, simplesmente, a dar-lhe espaço para uma pergunta maior à qual eu, de forma matreira, prolongava a resposta, só para a ter mais tempo a olhar-me nos olhos.
A felicidade que lhe iluminava a alma pelo muito que queria conhecer, alimentava-me, em segredo, o desejo de querer ensinar-lhe a paixão que, como um relâmpago estihaça a noite escura, me devorava a quietude dos dias. Sentia o fim do Inverno chegar ao ouvir-lhe os passos e a irreverência do estar num mundo demasiado pequeno para o infinito da sua ansiedade. Tudo era pouco para ela. Aprendia depressa e queria saber mais. Perdida na sua vertiginosa velocidade, ensinava-lhe tudo o que sabia, ao mesmo tempo que aprendia a agradar-lhe quase de forma inesperada.
Um dia percebemos que nos estavamos a aprender uma à outra. Um dia, ela deixou o mundo lá fora seguir a sua história e reparou no nosso mundo cá dentro, já demasiado consistente para ser ignorado. Esperei por esse dia todos os momentos em que sonhei acordada e todas as noites em que adormeci a percorrer-lhe o corpo e a desenhar-lhe um coração por cima da pele. Esperei que descobrisse por ela, que reparasse. Esperei que sentisse como eu. Lembro-me do momento em que me olhou, como se nascesse, e disse, 'E tu? Sabes quem és?'. Nesse instante, vi-lhe os olhos translúcidos atravessarem os meus e vasculharem-me o coração até eu ficar tão transparente quanto o princípio de lágrima com que me brindou na sua curiosidade. Pela primeira vez não respondi. Indefesa e transparente, a mostrar-me no meu silêncio, fiquei à espera de encontrar-lhe um caminho seguro para abrigar a palavra amor, que carregava, secretamente, na ponta da língua, em todas as palavras de todas as conversas que tivemos antes dela, nesse dia, perguntar por mim. Na minha exposição silenciosa, ela cresceu uma vida inteira e disse, 'Eu sei o que és para mim. És luz. És a arte e a poesia da vida. És tudo o quero ser para alguém'. E naquele momento renasci. O sangue voltou a animar-me as veias. Ganhei a cor dos quadros em meu redor. Lembrei-me do sol e roubei luz para olhar para ela. Senti a Primavera para sempre regressar-me quando lhe disse, 'Sou o fim do Inverno porque tu existes. Vivi séculos de escuridão até aqui e tudo o que aprendi foi para te descobrir. Sonhei-te de noite e pintei-te de dia, esperei-te em todas as telas da minha vida. Não existo se não fôr para ti.' E vivemos a vida inteira no nosso primeiro momento de paixão.
Vivemos um amor intenso e arriscado que a diferença de idades e o olhar acusador dos outros acabou por não poupar. E quando nos abandonámos, pensei em morrer. Morri muitas vezes na distância que nos separou. Sobrevivi a custo. Salvou-me a fé de um dia voltarmos a existir na Primavera dos dias. Ainda sinto que somos uma desde o princípio do mundo.
(Always a partir de um parágrafo de Urbano Tavares Rodrigues)
(*) Excerto do conto «Luz da Primavera» de Urbano Tavares Rodrigues