sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Aviso


FECHADO PARA OBRAS

Não há motivo para te importunar a meio da noite


Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como nâo há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica

Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.

Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.

Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
o direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.

E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?

Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.

José Luís Peixoto

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Química de alcova


Vamos imaginar que é apenas um alcalóide natural, chamado Feniletilamina, que põe em acção a dopanima, a oxitocina, a norepinefrina, a serotonina e todas as outras 'inas' que desconheço mas que acontecem em mim durante um beijo teu. Vamos imaginar que é apenas bioquímica e que o estado de paixão não é mais do que a combinação de diversas substâncias químicas misturadas, sem esquecer as feromonas. Então por que é que os teus beijos são diferentes de todos os outros beijos que experimentei na minha vida? Por que é que os teus braços são mais à minha medida do que todos os abraços que me embrulharam antes? Por que é que só a tua pele é a pele da minha pele? E por que é o teu cheiro é único e inconfundível? Por que é que os teus fluxos de prazer me enlouquecem de sede como se não existisse outra água nem nunca tivesse existido? A endorfina que em mim se liberta quando as minhas e as tuas outras 'inas' se combinam é quase inexplicável, não fosse a ciência dar-lhe nome e um nexo causal. Hoje, recordando o estado de sítio dos nossos lençóis de ontem, lembrei-me de pensar cientificamente no assunto. Não cheguei a uma conclusão diferente daquela que, no estremecimento do prazer, te segredei, ao ouvido: 'AMO TU'.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Leituras do Desassossego

Rob Oele, See Buoys 5, 2010

O desassossego de Pessoa fez-me entender que 'o maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio' e que se pensarmos muito sobre a vida é porque estamos perto da morte e da agonia que é darmos conta de todas as coisas que não fomos e, como diz o poeta, 'não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram'. Viver é saltar muros e não erguê-los. E, mesmo que o poeta diga que 'a vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final', a verdade é que temos de viver com coração e o coração não pensa, o coração sente. Aliás, 'o coração, se pudesse pensar, pararia', e isso seria a morte. Há em mim 'uma vontade de não querer ter pensamento,(...) um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma', uma vontade de vida absoluta e pura, concreta e definida pela certeza de um coração ingénuo e indomável. Porque 'amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas (...) E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer'. E por isso entristece-me não viver a vida num só dia, dia após dia. As perdas de tempo são puro desperdício e desgaste de tudo quanto é belo na alma humana.

Extractos a sublinhado retirados do "Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Levemente

Nealy Bob, Butterfly August 2*, 2007

Levemente, com a imponderável leveza daquilo que não se acaba te sonhei a vida inteira. Levemente, como quem chamou por mim, vieste ao meu encontro cheia de cor na alma, num dia cinzento diferente de todos os outros dias cinzentos de todos os invernos. Levemente vieste e ficaste em mim com a mesma cor do primeiro momento. Levemente cresci uma vida e um coração maior do que o peito para te abrigar. Levemente como uma flor que se balança ao vento me tornei prisioneira de um sentimento combinado de intensidade e infinito. Levemente me encostei a ti como a natureza se encosta à chuva e ao sol que a fazem florir. Levemente como um sopro de luz, um céu aberto de certeza, um querer constante e sem idade. Assim, levemente, como uma carícia que só as tuas mãos sabem na minha pele, eu existo e a ti me dou em Amor pleno, por inteiro, porque o Amor é essa leveza de sentir-te permanentemente em tudo o que sou e me descubro.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Intemporalidade

Bob Reynolds, The colors of the Fall #3

O futuro é uma floresta densa, virgem e livre e não um caminho plano, onde o horizonte se adivinha e tudo nos surge sem sobressaltos porque só caminhamos pelo que nos é conhecido. O futuro é uma missão, um compromisso com a vida, o futuro é caminhar livre sobre todo o tipo de terreno com a certeza de que vamos em frente, mesmo quando não fazemos ideia onde vamos, mas sentimos o prazer da caminhada. O futuro é o destino de um 'tu e eu' como nós. São os passos que damos lado a lado, o que tu andas e que eu ando também, o que eu avanço e tu avanças também que nos constrói o tempo, passado, presente e futuro. O nosso futuro é feito do que ontem conquistámos, do que queremos hoje e do que caminharermos amanhã. O futuro é essa vontade que nos embrulha uma na outra para chegarmos ao mesmo tempo onde quer vamos. E porque ninguém sabe realmente onde consegue chegar, porque o horizonte é uma miragem no coração de uma floresta, nós caminhamos convictas de que o mais importante não é a chegada mas a viagem que fazemos juntas. Porque nos cumprimos na partilha da paisagem, porque o futuro é um acto de fé e uma viagem de esperança. Porque o Amor é a nossa viagem sem fim, sem distância nem tempo. A intemporalidade do teu primeiro beijo é, para mim, uma visão luminosa de futuro.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pisar o risco

Yves Rubin, Above And Beyond, 2010

Que maçada seria se a vida fosse apenas um traço contínuo, numa recta sem altos nem baixos, nem direcções alternativas! Se andar em círculos é um desperdício de tempo, seguir involuntariamente uma linha, só porque tem de ser porque é a ordem das coisas, é caminhar moribundo para um ponto indefinido, incerto, inconsistente, numa viagem que deixa de fora qualquer esforço de descoberta. E quando caminhamos pela vida sem o prazer de descobrir a paisagem, sentimos o corpo velho antes do tempo, privado do sobressalto de espreitar desvios que nos desvendem segredos e nos revelem o desassossego interior que nos faz sentir vivos. A vida que quero contigo é a aventura da eterna descoberta, porque não te sei completamente e quero aprender-te tudo. Quero o desassossego permanente de te adivinhar o jeito, o corpo e o pensamento. Quero que corras atrás de mim para me atirar da cama para o chão e do chão para a cama, no divertido reboliço ateado pela pele incendiada uma na outra. Quero que as nossas noites de corpo aceso nunca cheguem ao fim, porque o desejo é infinito e nunca fica satisfeito. Quero continuamente pisar o risco, contigo, sempre, sentir-nos em alto e baixo relevo, sentir-te à flor da pele e em profundidade. Arriscar. Desvendar-te uma e outra vez, mil vezes mil, e inventar-nos segredos para nos partilharmos infinitamente com o mesmo brilho no olhar de quem se apaixona pela primeira vez. Quero arriscar continuadamente contigo, pisar o risco ao teu encontro, ao meu encontro, ao encontro do que a vida tem para nós.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Um castelo de seda

Lester Weiss, Spider web in abandoned shed, San Francisco, Ca., 2004

A nossa casa é a luz que nos sabemos acrescentar na alma dia após dia. Porque é na alma que a vida se reproduz, se desenvolve e se estende ao que fica do lado de fora. Porque é na alma que devemos permanecer abrigadas, longe de todos os perigos, imunes aos temporais. Na alma viva nada é impossível, de tudo se recolhe força e vontade de ser maior. É na alma que nos devemos preservar e viver o que acreditamos sermos nós e o nosso sentido de existência. Muitas coisas se passam do lado de fora, muitas delas são ruído e distorção e nós sabemos que assim é. O que está do lado de dentro de nós importa como luz fundamental. A nossa casa são esses fios de seda em que nos embrulhamos indestrutíveis, como numa teia de aranha que, apesar da sua aparente fragilidade permanece eficaz e suficiente. A alma não tem paredes de cimento nem telhado. Porque a alma não tem limite, é tudo o que tu eu soubermos construir como a NOSSA casa, resistente e inviolável.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Supernova

 Lester Weiss, Modern Nature series

Logo mais à noite, as estrelas esperam por nós indiferentes ao céu de tempestade que se abateu desde a noite e durante todo o dia. A luz das estrelas, que não é de hoje mas de há muito tempo atrás, continuará cintilante, a iluminar-nos gestos, pensamentos, palavras e acções. Logo mais à noite, seremos nós a intemporalidade dessas estrelas e não há vento nem chuva suficientes que nos extingam a chama que vive de dentro para fora, quando somos um corpo só. Pele da minha pele, dirás tu, coração único, acrescento eu. Nem a noite invernosa nos arrefece o sentir que nos queima incondicionalmente e nos deslumbra como explosões de luz pelo universo fora.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Reacção em cadeia

Rob Oele, Streetart in the NL, 2004

Se fosse fácil, não seria um desafio. Se não fosse um desafio, seria entediante. Se fosse entediante, seria superficial. Se fosse superficial, seria dispensável. Se fosse dispensável, não seria importante. Se não fosse importante, não seria a sério. Se não fosse a sério, não faria sentido. Se não fizesse sentido, seria coisa nenhuma. Se fosse nada, nós não existiríamos. Mas nós estamos aqui e carregamos um universo inteiro entre as mãos. A minha força é a tua força e vice versa. A nossa força é um sentimento raro que, de tão simples, chega a ser de difícil convivência para quem não está habituado a reconhecer as suas infinitas possibilidades. Pode alguma coisa ser mais intensa do que sentir essa força ilimitada? Penso que não e acredito que concordas comigo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Bip bip

Rob Oele, See Buoys 3, 2010

Saí à pressa de casa. Deixei coisas por fazer, desarrumadas, e outras tantas espalhadas pelo chão. Nem sei se me vesti completamente, nem reparei em nada a não ser nos ponteiros do relógios em nítida provocação. Saí à pressa de casa. Não sei se fechei a porta, se apaguei as luzes nem sei se trago comigo as chaves da porta para poder entrar logo mais à noite. Sei apenas que trouxe as saudades que tenho tuas porque me estão debaixo da pele, inevitáveis, constantes e incómodas como sal numa ferida. Corro pelo dia fora em carne viva, com a ansiedade de quem não sabe se o dia terá fim. Já passaram muitos dias desde que somos uma mas continuo ansiosa à espera de voltar-te como a vida que me corre nas veias, em tudo em que me cumpro e nos descubro em certeza e sentido.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Em contra-luz

Lester Weiss, Spilled oil, Mojave, Ca., 2004

Quando olho para o chão por onde ando encontro duas sombras paralelas debaixo do mesmo sol. Tu e eu. Quase inevitavelmente sigo às cegas as linhas que sei confluirem num mesmo ponto. Nós. Não estranhes a geometria descritiva de um percurso que não sabemos mas sentimos há muito tempo como nosso. Confia na sombra que segue à nossa frente com a certeza de saber por onde vai. Confia no movimento do sol que, dia e noite, se mantém num céu radioso, único, desenhado pela cintilância do que nos vem de dentro de forma tão inevitável. Temos a sorte de ser luminosamente recíprocas em qualquer estação do ano. Temos a sorte de termos um astro de luz na alma que nos descobre um mundo inesgotável que o Amor organiza à sua própria vontade.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Indisponibilidade

Rob Oele, Mysterious green device with rusty head, 2004

Caminho apoiada numa certeza que dá pelo teu nome. Se somos aquilo que sentimos, aquilo que sinto é absoluto e concreto, mesmo quando o chão é feito de areia e os pés me fogem, desarticulados. O meu caminho és tu em todas as direcções, mesmo naquelas em que me imaginas secreta, omissa ou apenas silenciosa. O que sinto e que te escrevo é o meu caminho definido pelos contornos que o Amor lhe desenha todos os dias, desde o dia que nascemos lado a lado. Pudesse eu ser mais concreta e definida para que me sentisses por inteiro neste desígnio que assumo tão completamente... Perdoa-me pela falta de palavras que me expliquem mais consistentemente. Perdoa o que falho em dizer, mas acredita na grandeza do que sinto sem limites de espaço e tempo, porque eu sou onde estiveres comigo, em qualquer parte ou mesmo num não-lugar.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mundo insuficiente

Paulo Calafate, Canon G10 series, 2009
Não acho que o mundo tenha sido feito para nós. Não foi. Importa navegar pelo tamanho das ondas e não esperar o que procuramos, importa partir do nosso lugar e encontrar ilhas para sentir e querer mais do que o mundo nos mostar. O mundo não foi feito para nós. Importa, no peito, a coragem rumo à dor que houver para vir e dar sentido à viagem do que em nós temos por descobrir. O mundo não foi feito para nós. O mundo é feito por tudo o que somos capazes de alcançar, pelas ondas que persistem como vontade de navegar. Importa, antes de morrer, saber que tocámos quem nos tocou, que agarrámos o que sentimos e quisemos segurar. Partir em paz é ter, na alma, uma paixão alimentada por Amor. Viver é esculpir o mundo à nossa medida, dar-lhe a forma dessa paixão que nos segura, lado a lado, num imenso mar que somos nós numa só.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Já te volto, Amor

Roan Kneppen, f.o.m.-sandbox-538

Hoje de manhã tropecei num dia cheio de cores e fiz estragos por toda a parte onde passei. Os lençóis estão manchados de tons alegres e vivos como a intensidade dos nossos corpos um no outro. O tapete deixou de ser monótono, porque a cor explodiu sobre ele de uma forma rebelde e transformou-o num organismo quase vivo e cheio de opinião, acho até que andou a passear pela casa enquanto nós, pele na pele, viajávamos uma na outra. Pelo chão, manchas de tinta de cores diferentes desenham contornos que imagino serem os teus passos misturados com os meus, numa abstração perfeita que condiz harmoniosamente com a sintonia de duas pessoas que foram Uma durante toda a noite. As paredes desapareceram e deram lugar a quadros que nos observam e interagem numa espontaneinade surpreendente e impossível de descrever. Por todo o lado tudo é cor, a casa, o carro, as minhas mãos, os meus olhos nos teus. Esta noite acordámos todas as cores do mundo e pintámos um dia bonito por todo o lado. O Amor é esta forma abstracta de te procurar e de te encontrar de surpresa aqui, agora e daqui a um bocadinho, ou mais logo, ou ontem... amanhã, sempre. O Amor é esta capacidade de rir, escrever cartas cheias de histórias e tropeçar em tintas de cores diferentes sem medo de sujar o chão.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Paixão da alma

Lester Weiss, Cracked glass, bus in junk yard, Barstow, Ca., 2004

Sinto os olhos em estilhaços e a alma um pouco desfocada e vascilante, debaixo de vento forte. Passou por mim uma imensa tempestade. Não caí. Estou agarrada a uma ideia que é, no fundo, o meu sentido de existência. Uma ideia que me salva e que me organiza, mesmo quando os olhos se partem em pedaços e se espalham pelo chão. Não sei desistir da ideia do Amor. Não desisto dessa paixão que me alinha os dias desde que te encontrei. Não desisto de acreditar porque sei que existes e, sabendo que és, eu existo para ser contigo. Trago em mim esta ideia, como parte de mim mesma, a segurar-me o corpo, a alma e o coração contra a fúria das tempestades. Pode alguém desistir de uma ideia que nos materializa o sentido da vida? E se o Amor é a vida, pode alguém desistir da ideia apaixonada de amar e ser amado? Não. Não imagino o amor sem esse estado de paixão pela vida, essa urgência por quem se ama em estado de permanência no pensamento. Se é demais, não sei. O que sei é que a ideia apaixonada do amor que te tenho é sangue e oxigénio que me anima e me torna consistente. Desistir de viver apaixonadamente esta ideia não é possível.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Recados

Paulo Calafate, Photographing Everything Series, 2010

Quase sem dar por nada, encontrei um recado num bolso que nunca reparo que existe. E, porque hoje reparei, procurei-lhe sentido e encontrei. Era um recado simples, algo que escrevi para me surpreender a mim mesma no futuro. Fui à procura de outros bolsos de roupa e sacos e neles encontrei notas e apontamentos que falam de ti, de coisas soltas nossas, de instantes únicos e impressões de alma. Há pedaços nossos em todos os compartimentos, gavetas e bolsos interiores. Fui escrevendo em toda a parte para depois lembrar. Parece que escondi para descobrir e recordar. Não me lembro de o ter feito, mas há recados de nós por todo lado, de ontem, de hoje, e se procurar bem, de amanhã também. Lembro-me do que está escrito, passado, presente e futuro. Percebes agora porque passo tantas noites sem dormir? Para espalhar recados nossos, mensagens importantes sobre o Amor que nos viu nascer e se escreve a si mesmo nos cantos e recantos da casa onde somos incondicionalmente sempre.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

No fundo do mar

Patrick Smith, Point Reyes Light, 2009

Hoje espreitei o fundo do mar e senti-me pobre por viver à superfície. Aqui, sentada no conforto e abrigada da chuva, desejei ser peixe das profundezas, irresistivelmente luminoso numa escuridão sem fim, apenas quebrada pela vida desses reflexos de luz. Hoje deixei-me seduzir por esse mundo de diferença, onde tudo é ao contrário do que aqui existe ao sol. Porque a diferença seduz e torna tudo mais encantador. Foi assim que te vi pela primeira vez, como se fosses o fundo mar, onde eu nunca fui mas onde presssinto a vertigem e a sedução hipnótica da diferença, do desconhecido. E assim te vejo hoje quando nem suspeitas que estou a olhar. Gosto tanto da forma como me encantas sem saberes, nesses instantes em que te visito no fundo do mar.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Folhear o chão


Barry Green, Japanese Maple in Autumn 3, 2006

Hoje, quando acordei, havia um enorme silêncio no mundo inteiro e eu estranhei mas não soube explicar. Quando olhei à minha volta, por todo o chão do quarto havia folhas secas, caídas, imóveis à espera de vento que as levasse. Estranhei mas não soube explicar. As paredes continuavam brancas, as portas abertas e havia luz tímida e indefinida a entrar pela janela, mas, no quarto, apenas um chão de folhas se percebia, até a cama tinha desaparecido. Estranhei mas não soube explicar. Procurei-te um beijo como todas as manhãs mas encontrei a tua ausência como almofada. Estranhei e, só então, percebi o vazio que me visita quando o Amor não está em casa. Percebi que, durante a noite, coleccionei os milhares de folhas secas que jazem pelo chão, para escrever nelas frases soltas de histórias nossas, memórias, fragmentos de momentos que nos estão debaixo da pele. Escrevi também o teu e o meu nome em todas elas e não me lembro de ter dormido realmente. Quero mostrar-te cada uma das folhas quando chegares, para que acredites que me fazes falta, que a tua ausência é um silêncio imposto ao mundo, que as saudades são folhas mortas cheias de histórias de vida interior que transbordam o coração. Fica sempre comigo, mesmo que a vida se nos acabe fica em mim como tu, em mim, estás sempre.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Vivacidade

Bob Reynolds, The Colors of the Fall series

E por entre o que caminhamos, em cima e debaixo do chão, a vida impõe-se na sua espontaneidade florida, indiferente ao nosso humor, cheia de sentido. Quase milagrosamente passamos de um estado ao outro, de baixo para cima, na contemplação dessa força maior e inexplicável. Porque a vida é vontade e a vontade leva-nos onde quisermos se quisermos, de facto, lá chegar. Porque a vida é acreditar numa ideia e cultivá-la resistente, amadurecê-la e crescer com ela e por aquilo que nos é essencial. Ideias simples e identificantes de centralidade e pertinência, como o Amor. Esgota-se-nos a vida no dia em que perdermos a ideia de centro e divagarmos na secundaridade de linhas concêntricas. Como eu, já pensaste nisso certamente, por isso caminhamos de mão dada o permanente milagre da vida de um amor correspondido.