quinta-feira, 5 de abril de 2012

Hoje e depois

Pekka Leppanen, Nails, 2011

Vou perder tempo a procurar um outro tempo onde me deixei suspensa e reaver o que de mim pendurei por falta de lugar na vida que não chegou a ser para sempre como eu queria. A memória é um calendário, uma colecção de momentos expirados e insuficientes para perder o presente a pensar no que não ficou. O meu sempre não é uma memória, é um sentimento vivo e, nele, ontem e hoje são unos, indistintos... e sem futuro. Não me vale de nada, sem retorno não vale a pena. Não vou perder mais tempo nesse tempo que, hoje, só existe em fotografias. Tenho coisas adiadas e gente à minha espera. E já estou atrasada, dizem-me e reclamam. E todos têm razão, menos eu. O Amor da minha vida não vale a minha vida adiada nem merece o meu amor de uma vida.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Tempo

Imre Kinszki (1901-1945)

O tempo é muito lento, para os que esperam.
Muito rápido, para os que tem medo.
Muito longo, para os que lamentam.
Muito curto, para os que festejam.
Mas para os que amam, o tempo é eterno.


Willam Shakespeare

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Domo arigato

Luís Afonso, 満開- Full Bloom Series, 2012

Do outro lado do mundo chegaram-me flores pela noite dentro. Entraram pela janela e espalharam-se pelo quarto. E continuaram a chegar de manhã cedo como se não viessem daquele longe onde o sol nasce primeiro do que neste céu ocidental. De manhã quando acordei havia árvores floridas por toda a parte e dei-me conta que, afinal, não são de longe, vêm da alma de quem nelas reparou beleza e a partilhou com igual encanto e sensibilidade. Chegaram-me sem distância flores guardadas com a emoção de quem tem, dentro, um jardim  sempre a florir. Recolho-as como nuvens perfumadas que abrigarei na minha casa com o mesmo abraço que trouxeram até mim. E debruço-me na janela para olhar mais de perto o jardineiro que, do outro lado do mundo, me espreita o coração com o toque de veludo de quem cuida de estados de alma.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Enquanto chove

Marco Heisler, 2009

Encontro nos dias de chuva uma forma de me chegar mais perto, de me espreitar com uma claridade diferente dos dias secos e soalheiros. E ando debaixo de chuva miudinha com a verticalidade das gotas de água como se eu e elas fizéssemos parte da paisagem natural. Nesses dias, em que os meus olhos vêem com argúcia os cantos mais recuados da alma, invade-me uma nostalgia feliz daquilo que me encontro através da chuva. Os dias de chuva não são em mim tristes como o céu cinzento que faz chover. São uma janela aberta àquilo em que eu me esqueci e que recupero às escondidas do sol que, tantas vezes, me cega a vontade de ver. A transparência das gotas de chuva devolve-me a luz do que fui e ilumina-me o que sou. De amanhã nada sei, nem a chuva de hoje o desvendou. Guardo apenas a luminosidade que, aqui e agora, me toca na alma.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Eternidad

Roe...2008

"...Las cosas que se mueren no se deben tocar."

Dulce María Loynaz, in 'Eternidad'

quarta-feira, 28 de março de 2012

A propósito da razão do coração

Anabark, Tecto da cama (MAI2006)

"(...) A emoção e o desejo são como a espuma e as ondas do mar é o que torna navegar excitante mas não decide a direcção do navio. Para o amor ser eterno (e o amor só faz sentido pensado e vivido como eterno) é necessária a razão para superar as inconstâncias do desejo. E é também a razão que alimenta e é capaz de reavivar o desejo: as dúvidas que planta, a sedução que promove, a imaginação que desperta. O amor verdadeiro só existe suportado pela razão. Mas não é uma razão qualquer. Não é uma razão de mercearia em que o amor se transforma numa lista de compras pela qual verificamos se ela tem ou não os itens a adquirir (importa passar mais tempo a procurar razões para amar do que a elencar as razões para não amar). E também não é a chamada razão do bom senso em que subordinamos o amor a uma certa razão social. Não é a razão dos outros mas a nossa razão. É uma racionalidade vinculada à emoção. O amor encontra-se quando a emoção nos diz para seguir a razão. (...) Porque o amor tem necessariamente uma razão de ser. O amor é o que sobrevive para lá das dúvidas, suportado pela razão. (...) Fácil é evocar o coração para não ouvir a sua razão. Fácil também é escudar-se na razão para fugir ao coração. Difícil e verdadeiramente romântico é decidir do amor com o verdadeiro uso da razão. Só assim se encontram as razões do coração. As razões que dita o coração e pelas quais alguém nos faz perder a razão."


Miguel Poiares Maduro, in Diário de Notícias, 16. Março. 2005

terça-feira, 27 de março de 2012

A propósito do Amor

Autor desconhecido

O Amor não se compadece com a dúvida nem com a indefinição. É um estado absoluto de ser em tudo à nossa volta. É um tudo por oposição ao nada, porque no amor não existe um meio termo e quem se aceita e vive nesse intervalo não ama ou não sabe o que pode ser o Amor. O Amor desarruma-nos de alto a baixo e recompõe-nos numa ordem diferente à que estamos habituados. O Amor é um incómodo, o coração na garganta e a ansiedade que nos persegue para todo o lado. O Amor vem-nos com a certeza do desassossego e a inevitabilidade da dor, quem o sente vive-o por inteiro e sofre-o em duplicado. Ninguém que ame se perde na dúvida do que sente. A dúvida que nos consome a existência é encontrar quem nos ame desta forma plena e verdadeira. Gostar não é amar e quem amou sabe isso de cor, debaixo da pele, a dormir e acordado. Este tudo e tão completamente que é o Amor só os loucos e os inconscientes desperdiçam, porque este estado absoluto de querer tanto a alguém é tão raro quanto irrepetível... e só vivemos uma vez.

domingo, 25 de março de 2012

Só para adultos

Kees Terberg, In Vino Veritas XII

E quando achamos que sabemos tudo, aprendemos mais um bocadinho da certeza que nos falta. E adormecemos nessa parte descoberta para acordarmos mais inteiros, mais acrescentados no que somos e menos presos ao que julgamos ser. Não é o tempo que nos amadurece, mas tudo o que a sua passagem nos ensina. O tempo confirma ou desmente a essência, ou a falta dela, das pessoas. Traz certezas, desfaz enganos e, por vezes, descobre-nos que, afinal, a razão que a nós mesmos negámos, por vontade de acreditar numa história encantada, estava do nosso lado. E, ás vezes, doi ter razão, tanto que desacreditamos a fé que, antes, nos salvava. E os dados voltam a ser lançados em busca de melhor sorte. Amadurecemos uma ideia que cresceu certeza e uma vida morreu. Do vinho não se fazem uvas. A certeza que nos encontra com o tempo abraça-nos a calma de quem aprendeu uma lição. Não foi tempo perdido. Resignada a alma reencontra-se e recompõe-se mais forte. A vida dá-nos a prova que nos falta, não é importante ter razão, importa sim a humildade de reconhecê-la e aceitá-la em quem a tem quando percebemos que julgámos mal e nos enganámos.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Livre

Steve Gosling, Blue on red

Passo a passo todos os caminhos são possíveis. Só aquilo que acreditamos impossível se torna impossível de facto, primeiro por falta de fé depois pelas condições que nos impomos e que nos tolhem os braços. A vontade é inimiga do impossível e a liberdade também. Passo a passo caminho em liberdade, ao encontro de tudo o que acredito, na alma, como essencial. Nada me prende e ninguém me censura, sou livre na minha decisão. Escolho o meu querer, a minha força e sempre o meu coração. Sem essa liberdade eleita e defendida não sou nada, seria a morte porque não existe coisa pior do que a escravidão do vazio. Rejeito a ideia do impossível porque me sei livre. Respondo por mim, vou onde quero ir e não gosto que me digam 'só podes ir até aqui'.

terça-feira, 20 de março de 2012

Luto

Rousselziak, Le Lac

Não te espero. Não te quero senão pela vontade, que não tens, de me quereres a mim também. Vesti o luto de um amor vencido que nada mais tem a perder e agora já não me esqueço de me lembrar de te esquecer. Deixaste de gostar do que, em mim, dantes, te era infinito. Hoje desconheço-te, desencontrei-me do que antes te conheci. Deprecias o que ainda existe em mim. Não te oiço nem te vejo senão pelo que te imagino. Saber-te, não te sei. Não te resto hoje nem sei se te resto no tempo em que, um dia, nos encontrámos. Não sei do que te lembras daquilo que dizes não ter esquecido.  Não posso recolher o que de nós perdeste pela estrada do fim. O que guardo é meu, porque o sempre ficou do meu lado e tu moras num outro mundo sem pontes nem caminho de volta.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Integridade

Tomasz Dziubinski, The Black Art, 2010

No que não tenho desapareço, deixo aos poucos de existir. No que não tenho sou memória, vida que só existe em mim. No que não se vê o tempo envelhece-me num lugar distante. No que não se vê deixei de ter lugar para além do que sinto em mim. No que não esqueço só me abraça o vazio. No que não encontro sinto o medo e tenho frio. Em quem morri não volto a ser. No que me ficou, não serei outra coisa. Tanto faz. O que sou basta-me, tenho um coração imenso para doar e um sentimento raro que aprendi como princípio de vida. Sou esse infinito íntegro que, um dia, floresceu em mim.

domingo, 18 de março de 2012

Pontos de fuga

Steve Gosling, Sea, sand & sunset

A verdade é uma história diferente consoante a voz que a conta ou que tenta encontrá-la. As razões mudam conforme os lados da questão e a história que se conta não será nunca a que aconteceu mas o que cada uma das partes compreendeu sem modéstia e com a arrogância de quem se defende em primeiro lugar. A verdade perde-se nas versões que a relatam e, nessa forma obcecada de querer ser mais forte e ter inteira a razão, perde-se o sonho, a promessa de um Sempre e a confiança no abraço do Amor. Porque a verdade não é absoluta não haverá nunca versões coincidentes, nenhuma das histórias será a verdadeira. As histórias que se contam são formas encontradas de nos segurarmos de pé no nada que nos fica depois do tudo que nos falhou. A verdade anda longe de quem quer ter razão. Mente-se, inventa-se, reescreve-se o fim da história com o azedume do desamor. E porque a vontade de perdão morreu, acreditamos que temos a razão toda para curar a nossa dor. 

quinta-feira, 15 de março de 2012

Intimidade

Looseends, Sea Smoke #1

Tudo aquece e ganha cor pelo conforto de estar com alguém que nos conhece por dentro e por fora e nos adivinha quando nós mesmos não nos sabemos por inteiro. Não existe maior intimidade do que aquela que nos abraça sabendo o que somos quando a nós mesmos nos enganamos por nos ser difícil aceitar aquele lado nosso que, não nos agradando,  preferimos ignorar. Quem amamos aprendemos de trás para a frente, porque tudo o que conhecemos nos parece pouco e queremos saber mais. Estamos atentos como se a nossa vida dependesse de pormenores, coisas poucas e pequenas que queremos aprender a amar como prova de amor absoluto. Quem ama recebe-nos no conforto de sermos naturalmente o que nos vai na alma, sem inibições. Quando amamos não descansamos, todos os dias arrumamos e desarrumamos. E nunca adormecemos em silêncio porque todas as noites temos um mundo novo para partilhar. Quando amamos, o que somos não é apenas nosso, queremos dá-lo e ensiná-lo a quem sabemos que nos conhece por amor.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A memória que não dura

Melanie Lawson (National Geographic)

O Tempo, que dizem ser bom conselheiro, escreve ele mesmo o capítulo derradeiro. A memória não será para sempre, porque se desvanece no passar dos dias até se tornar em vaga lembrança, presa por um fio, de coisas desordenadas. O que não ficou, não será nuncaO que nasceu e não foi cuidado, morre sem nunca ter crescido. O que não se sente não existe e não existindo não faz sentido acreditar que sim. Tudo desaparece, tudo se esquece. A fé que salva mata-nos também no que queremos e não sabemos guardar. Porque depois do adeus não há mais nada, a não ser um fim a que nem a memória escapa.

terça-feira, 13 de março de 2012

A curva da vida

Stanko Abadzic, Road with Light and Shadows, 2011

Que triste, imagino eu, ser velho antes do tempo nos envelhecer! Que pobreza de espírito é pensar e acompanhar o mundo de forma estagnada, sem perceber que não existem linhas rectas onde as coisas acontecem tal como como programadas. Que maçada deve ser viver sem o sobressalto das curvas e contracurvas e morrer igual ao que se nasce, espartilhados ora no preto ora no branco, ignorando outras formas de ser e de estar mais coincidentes com o que o mundo, ele próprio, evolui. Lamento tão profundamente os que dormem fechados em visões de existência estanque, presos a um deve e um haver ultrapassados, como se a verdade fosse um caminho de sentido único e a nossa humanidade perfeita. O desvio existe e ainda bem, porque é na aventura do desvio que o tempo não nos vence e não nos deixamos envelhecer à sombra de ideias feitas e esvaziadas de conteúdo. O desvio é, acima de tudo, vontade de vida e sonho.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Carne viva

Yiannis Pavlis (2007)

Acima de tudo viver é sentir. Não é nascer, crescer e morrer, sendo-o também. Viver é amar, sorrir e sofrer com a dor, porque o Amor dói por tudo o que nos faz sentir de uma forma ou de outra. A vida não é um estado alucinado de felicidade ininterrupta que só os inconscientes acreditam. É ganhar e perder e sentir  o peso da perda como a alegria da vitória, com a mesma intensidade. Viver não pode ser apenas respirar por entre gente ou ficar pela metade. É querer sempre mais daquilo em que se acredita. Viver é conquistar e não evitar os campos de batalha. Não existem estados de tranquilidade absolutos para quem se quer vivo. O desassossego constante do sentir vale cada lágrima de dor que bate no peito em lugar de um coração feliz. Porque estar vivo é sentir, seja lá o que isso for, mas que seja Amor acima de tudo. Viver é a aventura de uma busca de sentido, errar, aprender com o erro e trabalhar para acertá-lo. Estarmos vivos é sentir Amor e dor, aceitando que nos dói porque nos é importante e pleno de sentido. Viver não é respirar, sorrir e andar para frente pela metade. É sentir vazios, ausências e saudades e preenchê-los com Amor de verdade.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Montanha

Emerald Lake (Tongariro National Park - Nova Zelândia)

Depois de muito, depois de tudo, já não tenho mais alternativas do que aquelas que esgotei, a não ser sanar a parte doente que me deixa imóvel, estagnada como que à espera de uma liberdade que eu mesma não me acolho. Não tenho mais decisões para tomar, nem escolhas nem planos para testar. Tenho um caminho interior para andar e a minha verdade das coisas. Só posso agir sobre o que está ao meu alcance, no que depende de mim. A minha montanha é alta e impossível como todos os amores mal resolvidos são, para o esquecimento, tarefa impossível. Não sei o que está certo nem o que está errado e o que é justo ou injusto é-me indiferente, porque nada é tão linear assim por muito conveniente que nos fosse simplificar a vida dessa maneira. O que sei é que de nada adianta teimar numa causa tão perdida. Quem me dera ter respostas sábias e desatar as mãos de um sentimento que, para além de mim, não vale nada!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Cegueira

Sheila, May 28. Abstract swan, 2006

Nem sempre o óbvio é perceptível. Nem sempre os olhos nos deixam ver a realidade. Nem sempre acreditamos no que vemos porque, por vezes, não vemos só olhamos. Quando os sentidos nos falham, importa ver com o coração. O que sentimos não nos engana, será sempre verdadeiro. A luz que alma acrescenta ao que somos em relação ao mundo é a nossa real imagem no espelho. Não se vê, sente-se e dá-se a sentir a quem nos quer bem. Quando os olhos nos falharem, tudo o que nos resta é a verdade que o coração põe diante de nós. Quando olho à minha volta acredito no que sinto na alma com o coração iluminado. O que não vejo com coração não existe, é triste, pobre e moribundo. A verdadeira morte é aquela que nos impomos dentro do peito porque nos convém ou porque nos dá jeito não ver nem sentir a verdade que da alma nos vem.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Gota a gota

Stanko Abadzic, Reflections, 2007

E a terra reflecte o céu, tudo do avesso, numa poça de chuva imaginada transparente e lúcida. No céu distante não sobra mais nada ao encontro da terra. Tudo é ar, vento e tempo que sobra. Reparo nas nuvens que passam e não ficam, como repara em quem passa sem me prender a atenção. Tenho o resto da minha vida para ser de novo. Tenho tempo suficiente para voltar a nascer e viver o que alma me dita. Tenho parte de mim à espera de ser aquilo em que se acredita e outra a acontecer no resto que me fica. Sou terra e céu juntos em alto mar. Nas ondas encontro a vida das vidas que desperdicei a naufragar em poças de água.

terça-feira, 6 de março de 2012

Degelo

J. Le Montagner, Tear Winter series (2005)

Pendurei o inverno numa corda a ver se aquece e se torna primavera de dentro para fora. E espero que chova, e muito, para que nasça forte a esperança e a vontade de ser calor. Neste pedaço de terra onde me passeio em bicos de pé sinto o chão, que sempre ousou ser fértil, à espera em desassossego. Semeei sonhos e deles não desisti e fé no que ainda não vivi. E espero pela primavera. No coração cuido do jardim feito de memória e da força de um sentir profundo. O lado infinito de mim não tem estações do ano, tem flores que o tempo não seca e o Amor que sempre teve, vivo e sem fundo. No coração o tempo é uma janela por onde se espreita o que sai da terra e o que nos fica para sempre na alma.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Estreia

Edward Weston, Nude, 1925

Porque o tempo nada pode contra o que a alma reclama eterno. Porque existem horas que duram para sempre debaixo da pele. Porque em mim houve um incêndio que nunca se apagou. Porque momentos únicos são, para além das palavras, aquilo que é verdadeiramente nosso. Porque possuo por inteiro o que não esqueço.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Sonho

Anabark, Total Recall (JUL2011)

E a vida que não são mais do que dois dias vai acontecendo mais depressa do que os ponteiros do relógio. E o relógio da vida nunca se atrasa por muito que nos pensemos adiantados. E há um momento certo para chegar á linha de tempo em que existimos em pleno e sem desfasamento. Ás vezes, enquanto dormimos, sonhamos e tudo parece no devido lugar, sólido, inteiro, como se um anjo da guarda trabalhasse por nós a noite como dia que sonhamos eternamente. Hoje sonhei que assim era, que acordava num beijo demorado, numa manhã de sol e cheia de música. E que a beleza das coisas simples me deixava sem palavras, perdida na contemplação. E, por intantes, deixei de fugir ao que sinto, deixei de fingir. Aceitei a miragem do tempo e fui, com coragem, até ao centro do coração. E de lá trouxe como agasalho a memória de um beijo sem chão.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Estrelando

Miguel Furlock, The Idea Of Angels - take #218 (2008)

Por onde andam as estrelas quando não as vejo? Para quem brilham quando se escondem dos meus olhos, tornando a noite mais silenciosa e fria pela falta de luz? Por onde anda essa luz universal quando foge ao particular que a descreve em poemas inacabados? A noite, que lá fora chega, encosta-se a mim de mansinho e faz-me a mesma pergunta como eu tivesse alguma resposta para dar. Nada sei. Encolho os ombros e deixo-me estar. Algures por aí, outros infinitos particulares festejam a luz das estrelas que não brilham aqui. Eu só sei da luz que seguro na alma como princípio do mundo, sem noite nem dia, sem medo nem fundo.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Febre

Queno, Kamouraska, Quebec (2010)

Hoje não me encontro. Deixo-me ficar sossegada á espera que os olhos adormeçam, imitando o corpo dorido e dormente. Hoje não encontro nada em mim para além da febre que me impede de dormir. Imagino coisas sem sentido e essas coisas sem sentido tomam conta de mim. Deixo de estar aqui, descubro-me em sítios improváveis, em conversas impossíveis e nada é real, para além do corpo demasiado quente, invadido por histórias febris que não domino. Hoje não me encontro na minha vida de todos os dias. Hoje procuro um fio condutor e digo coisas sem nexo com a lógica de quem procura água num deserto árido. Hoje adormeço em miragens que me invento e que não distingo entre si. Não dou conta de mim, ardo em febre e queima-me o coração que seguro nas mãos como quem salva coisas de um enorme fogo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Por fazer

Peter Sussex Ship in Blue, 2008

A mais dramática inconsciência no ser humano é não ter noção de que vivemos em contagem decrescente e que, um dia, que pode muito bem ser amanhã ou daqui a bocadinho, chegaremos ao fim e tudo o que não acontecemos e que esteve ao nosso alcance cavará mais fundo, na alma, o buraco das coisas falhadas. Tudo o que adiámos, falhámos; tudo o que tocámos e não agarrámos, falhámos; o quanto amámos e não confessámos, falhámos. O tempo não volta atrás para remediar a alma rasgada pelo arrependimento do quanto não ousámos. Perdemos coisas, e pessoas também. Quando for tarde demais, já não vamos a tempo de salvar e acabaremos mais pobres e mais sós. Perdemos tempo por tudo e por nada e, muitas vezes, não chegamos a tempo de dizer a quem amamos ‘Gosto tanto de ti!’. E assim perdemos o mundo e as pessoas de quem gostamos e que fazem a diferença na nossa vida. E perdemo-nos também a nós por não termos dado tempo ao abraço que ficou por dar.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Vagar

Anabark, Undercover (FEV2012)

Desencontro o passo e avanço sem olhar o chão. Ergo os olhos em busca da paisagem que perdi de vista numa sala fechada pintada de noite e de silêncio. Encontro a cor dos olhos nos móveis em meu redor. Nas paredes escrevo letras de canções que conheço de cor e nelas penduro o tempo que dispo e visto conforme os dias. Às vezes danço nas horas vagas, outras vezes tropeço nelas desinspirada. Procuro por toda a casa o lugar secreto onde guardei a música e encontro histórias que nunca ouvi nem li mas que conheço bem. Escrevo nas paredes que restam sem canções o que alma não sabe cantar e, por falta de voz eloquente, tiro fotografias a palavras em movimento que, de vez quando, deixo sair pela janela para respirarem por mim.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Viagem no pormenor

Rob Oele, See Buoys #4, 2010

Há dias em que recupero o pormenor e viajo por linhas que não se vêem até a um centro imaginário de coisas que não estão lá à primeira vista. E reparo nos pormenores com a precisão e a intensidade de um beijo, querendo aprender e viver tudo no espaço de tempo desse instante que sentimos dentro como infinito. Penso muitas vezes na imagem que nos fica no segundo que antecede um beijo apaixonado, antes de fecharmos os olhos orientados pela força do desejo. Nesses dias, o tempo corre e não sei bem como e nem por onde passa. Sei apenas a viagem que me percorre da alma ao corpo, e nela me perco como quem beija apaixonadamente lábios desejados e correspondidos. E nela sonho por todos os amantes que se acreditam eternamente.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Negra a noite

Anabark, Pela Noite (FEV2012)

Um incómodo, por certo, as perguntas impacientes, mas já não me importo com isso. Incomodam-me, sim, ruas escuras, portas fechadas e frases como 'Nunca mais!', pelo rasto de morte consentida que deixam à solta. Só na alta noite percebemos tragédia da falta de luz. No tempo bom e fixo, as cores são estrelas permanentes que nos distraem a visão, nenhum chão nos atrapalha quando a luz nos segura como um beijo que nunca chega ao fim. À luz do dia sobramos em coragem, crescemos o que nos falta para chegar ao que acreditamos possível e, às vezes, ao impossível. A luz abraça-nos em audácia e o resto fica por nossa conta. À noite escurecemos. Enfraquece o querer e a sombra invade a vontade como uma mancha de bolor. Foge-nos a certeza do que antes era cor. E todas as ruas são o perigo da dúvida e do medo, porque nenhum caminho é seguro quando se perde a coragem e quando as portas fechadas condenam à morte o que nos fica do lado de fora. Raros aqueles que se seguram firmes, indiferentes à escuridão.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Pistas

Anabark, Evidence (FEV2012)

A vida, essa coisa indefinida que todos queremos controlar ao sabor da nossa vontade e capricho, acontece como um carrossel de manchas indistintas, sinais que, muitas vezes, não sabemos que o são e que, distraídos, passamos por eles alheios ao seu sentido e causalidade. Esta fluidez codificada, que não alcançamos e que não podemos evitar, segue a vontade do universo, imenso e sábio nos seus próprios desígnios. Tropeçamos no acaso que não é acaso e seguimos em frente com indiferença, como se as coincidências existissem e houvesse alguma lógica em existirem. Ignoramos uma lei maior pela inconveniência de acreditar que não somos senhores do nosso próprio destino,  perdemos pistas pelo caminho e chegamo-nos pela metade. No que não lemos por apatia ou negligência deixamos de acontecer de forma inteira e ficamos aquém da nossa própria vida, do sentido pleno da existência. Porque nada acontece por acaso.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Árvores de sombra

Anabark, Impressão de sol (JAN2012)

No muro ficam pendurados quadros pintados pelo sol que, teimoso, espreita, através de um céu de inverno. No gelo das mãos seguro o princípio de luz que ali acontece efémero. De mãos geladas agarro a ideia de calor que veste de vida a parede pelo contraste de luz e sombra. E chego a sentir-me aconchegada na contemplação de um sol que não me aquece apenas me promete o corpo quente. Do quadro pendurado pelo sol no muro guardo a ideia, como agasalho sobre pele despida, do que antes foi jardim fértil de primavera e que agora é terra dura e fria. As flores desapareceram, só resta o muro de vez em quando visitado por passáros que me voltam sempre como um regresso a casa. E eu acredito no bater de asas e na promessa de flores que trazem no bico e que poisam sobre a erva daninha.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Enquanto anoitece

Niki Conolly, Table Dance Series, 2007

Enquanto a pouca luz dança com o seu próprio reflexo num espelho velho, converso com o fim do dia sobre coisas impossíveis que ficaram por fazer. Por vezes chego a convencer-me que tudo posso, basta ousar, aqueles que ousam estão mais perto de ganhar. Outras vezes, baixo os braços, encolho os ombros, respiro fundo e desisto. Abandono o que não me espera e os encontros impossíveis. Não ouso para além do silêncio, porque para além do silêncio o nada é ensurdecedor. Abraço a noite com o que me fica dos dias. Tudo quanto existo ponho em força nesse abraço que amanhã me acordará a vontade de acontecer novamente.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Linha de água

Queno, Lac Nominingue - Quebec, 2011

Afogo os pés cansados de sonhar caminhos e de, passo a passo, percorrê-los na imaginação, detrás para a frente e ao contrário. Descanso e respiro o ar que nunca me chega porque o ar é raro neste sítio alto onde os sonhos nunca perdem asas. No céu, estranho a ausência de estrelas, porque sei que existem e já as vi por aqui e nos meus olhos guardei-lhes a luz que nunca chega ao fim. Não preciso de ver, guio-me por instinto. Encontro tempo para ficar suspensa numa ou noutra ideia à espera de precisão. Sentada neste não-lugar onde o universo inteiro acontece devagar em mim, chego mais perto da essência das coisas que o são porque eu as penso, de outro modo não existiriam. Ter alma é uma extravagância, alimentá-la é um luxo. Quando olho em meu redor as ruas estão desertas de pessoas, embora cheias de gente indistinta. Deixo-me à beira da água, os passos que dou no mar não me custam chão. Troco terra sonâmbula por mar adentro para chegar mais perto do que me pressinto.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Perder o chão

Andrei Tarkovsky, Ivan's Childhood (1962)


"Num beijo saberás tudo aquilo que tenho calado."

Pablo Neruda

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Em abstracto

Anabark, Naked Trees in the Mist [DEZ2011]

Pode ser que a incerteza da sorte, um dia, não o seja e que o abstracto das coisas deixe de o ser também. Pode ser que o destino exista e, acontecendo, se desfaça o mistério. Pode ser que a sorte e a incerteza combinados sejam também luz debaixo de nevoeiro. Pode ser tudo isto ou apenas o mito de uma ideia. Por ser que a sorte não exista e o destino também não. Porque o abstracto é uma construção que nos segura no desespero da incerteza. Porque precisamos do mistério, do encantamento de não saber tudo e de sonhar o desconhecido. Precisamos de descobrir eternamente. Uma alma apaixonada tudo pode, porque acredita e mantém a fé. O concreto faz-se de conquistas, daquilo que se constrói pela paixão que, um dia, se tornou Amor.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Folhas caídas

Anabark, Espelho da Noite (FEV2012)

No relógio passam horas de silêncio. Não as conto. Encontro outras formas de viver o tempo que não passam pelo relógio, porque esse mente, porque nem sempre pouco é realmente pouco e muito pode muito bem nunca chegar a ser suficiente. Não existem prazos, tempos definidos, adequados ao que sentimos dentro ou deixamos de sentir. Um coração parado vive as horas no tempo exacto que elas duram. O coração que sente vive a passagem do tempo pelo número de folhas de árvore caídas no chão, sopradas pelo vento, e sonha as horas que voam em cada folha como uma promessa de primavera. O coração que sente não adormece no silêncio da noite nem na ausência dos dias. Por fora o relógio envelhece-me nas voltas que dá sem fim. Mas não as conto. Encontro outras formas de vida a que o tempo não pode planear nem princípio, nem meio nem fim. A vida que me anima é o infinito que me habita, com sentido, o coração.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O invisível

Anabark / Tiza Gonçalves, Self-portrait, (JAN2012)

Não percebo. Nem vale a pena pensar e racionalizar o que sinto que pareço que sou. Serei isso e mais certamente, e esse certamente que sei que sou nunca o saberei exactamente. Não percebo. Não percebo o que me percebem. Percebo o que sinto e o que sinto define-me em parte. O resto de mim desconheço, o que os outros me sentêm não alcanço completamente. Não o serei exactamente mas a impressão construída não controlo, nem a ela sou isenta eu sei, existe fora de mim no que me inventam e me percebem também. Sou a obra e o rascunho ao mesmo tempo de um projecto para sempre inacabado. Não percebo o que me sentem. Sei o que sinto e sinto o que sou em mim mesma de forma inteira. Nunca serei a fantasia do que os outros pensam que sou, porque sou apenas aquilo em que me encontro dentro sem equívoco e sem a pressão da expectativa do mundo.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Ao lado

José Paulo Andrade, More red and green

Somos o que somos, o que aprendemos e o que nos acrescentamos todos os dias,  mas também o que não somos, ou a incapacidade de ser o que nos projectamos e que gostaríamos de cumprir. Somos também o que falhamos e só uma inconsciência adolescente nos distraí dessa condição inevitável. De resto, vagueamos no desassossego do que não chegamos a ser e do que perdemos por não ter sido suficientes. Talvez porque nunca deixamos de querer o que não somos. Talvez porque aquilo que conseguimos, aquilo em que nos satisfazemos nos seja pouco e, por vezes, por aproximação. Ou porque queremos pouco o que temos, ou porque tendo o que queremos não o amamos. Porque o que amámos e perdemos, seguimos a amar o que, antes, não reparámos por inteiro, aquilo que não amámos completamente apenas o pensávamos como uma emoção. Porque o coração parado não sente, pensa e perde por omissão. Somos desejo infinito e erros também. E, às vezes, aprendemos na perda o quanto não somos.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O dia em que a terra parou

Mitch Dobrowner, Hiprock Storm, Navajo Nation, NM, 2008

Num outro tempo, num outro mundo, hoje foi o dia!...

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Prova de vida

Ann LT, Sprayed 5

Inútil seria procurar sentido na passagem do tempo, porque o tempo é abstracto e não será o artifício do calendário na métrica dos dias que traduz a dimensão do vivido. Prefiro a história das manchas na parede que, silenciosamente, se vai alterando no tom e aumentando nos factos, até deixar de ser pertinente considerá-la à parte da casa. Prefiro interpretar o pó que pelos cantos se acumula ou a cinza dos cigarros espalhados pelo chão. Vestígios de vida em lugar de abstracções. Porque muitas vidas se vivem no mesmo tempo. Porque o tempo é irrelevante nas vidas que nos acontecem por dentro. E porque às vezes não estamos por onde passamos. Passa-se pelo tempo mas nele nunca ficamos.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Segundo a segundo

Anabark, Sem Cabeça (JAN2012)

O espelho reflecte o que falha na expressão do pensamento. Não a realidade em si, mas um aspecto do real mais rápido do que o pensamento. Porque o tempo nos acrescenta ou nos diminui, somos apenas por um segundo essa imagem que o espelho nos retrata. Não somos mais do que uma soma de brevidades em que a toda a hora nos acontecemos diferentemente e de forma irrepetível. Não existem dois segundos iguais, não existem segundas oportunidades. Tudo o que acontece é uma estreia absoluta, mesmo que acreditemos o contrário. Estreamos cada minuto que passa com o que transitamos do minuto anterior, somos diferentes em cada instante porque o tempo será sempre outro. Não nos repetimos, há uma espécie de velhice que nos assiste segundo a segundo. Tudo existe como uma oportunidade única.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Alma de rede

J. Le Montagner, Ice

E se, na vida, nós temos um grande sonho e a ele faltamos, que vida acontece no vazio? E se, na vida, descobrimos um propósito fundamental e ele nos falha de repente, que diferença na vida nos faz a deriva? E se, na vida, encontramos o sentido essencial e o evitamos por inépcia, que vida é essa sem corpo nem chão? Porque a alma humana é vítima da dor e a dor da alma ninguém sabe como se evita. Sofre-se o desconforto e o incómodo de estarmos vivos sem sonho, sem propósito e sem sentido. A dor insidiosa de quem estando vivo não se dá conta, faz mirrar a alma e há até quem morra cuidando que vive mais do que o resto do mundo. Aqueles que se escolhem a si mesmos acima de qualquer suspeita perderam a imaginação e o sonho. Porque onde não existe margem para uma ou outra pergunta, o chão é gelo que torna a alma fria, deserta e ausente do mundo. Esta incapacidade de ser não é vida. A inconsciência é um perigo maior que muitos abraçam pela dor que os estremece à noite, perdidos no seu próprio vazio.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Coisas certas de incerteza

Anabark, Sombras no Muro Series #1 (JAN2012)

No muro desfilam horas que se tornam dias crescidos e nos negam coisas certas, coisas que nos devolvem sombra como a única prova de que o sol é permanente, indiferente ao poente e ao amanhecer. O que acontece nos intervalos da negação é o ritmo da vida, o nosso tempo pessoal. O que agora existe mais logo será sombra e, amanhã, voltará como realidade sem que o muro, que continuará no mesmo lugar, sirva de testemunho. O resto é a vida que nos cumpre e nos deixa, como luz que nos morre à noite e nos acorda de manhã e uma nova hipótese de ser e encontrar o mundo. E se a vida é  uma incerteza, o sonho dá-nos coisas certas porque a imaginação é tudo e sonhando temos o sol, a lua e toda a luz que pode haver. E o imenso absurdo de sonhar o impossível derruba muros com a força da fé. Crescemos mais pelo esforço dessa teimosia do que pelo braço da razão.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Escrito na areia

Chester Michalik, Figure, 1971

Encontrei-te a custo numa ideia antiga de infinito e dou-me conta de que o tempo traz outro tempo atrás e que não existem horas estanques nem momentos fixos, mas instantes em que as ideias se cumprem e depois se desmaterializam. No que me vou perdendo do passado encontro o presente em alta definição. Não se cumpriu a ideia primordial senão no seu esboço e numa promessa de corpo suficiente para resistir e viver para além da areia dos dias. Guardo perto amores antigos sem o tempo voltar trás, porque eles e eu escolhemos ficar sem tempo. Porque é mais o que nos une do que o que nos separa ou, simplesmente, porque abraçamos o que nos ficou sem condições. Não encontro nada de ti, vives ausente e livre do passado. Não seguro sequer a ideia clara do que te fui e que só, muito a custo, consigo definir. Na ideia antiga encontrei-te algo que nunca foste a não ser no poema em que te construí.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Epílogo

José Paulo Andrade, The nail head, 2008

Não havia mais mar por navegar, apenas o desafio constante das ondas. Não havida mais mar desconhecido, apenas o sobressalto das vagas e o vento de encontro ao navio. Não havia mais longe por descobrir, apenas a teimosia de resistir ao frio. Não havia mais fundo do mar sem restos de tempestade, apenas o sonho de um tesouro, nunca encontrado, sem idade. Não havia mais pedaço de vela por rasgar, apenas a força de braços para seguir adiante para além dos destroços. Não havia mais do que a cor que vesti por dentro entre as sobras naufragadas do que foi um barco, espalhadas pela praia. Nem tempo nem vento nem palavras, apenas o que pintei na alma como infinito.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Era uma vez

J. Le Montagner, Winter Bench

Num reino muito distante...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Arrecadação

Anabark, Espreitar (JAN2010)

Guardo tudo o que vejo e sinto na alma como se parte de mim soubesse que o mundo que conheço acaba amanhã ou no dia a seguir. Guardo quase tudo de forma arrumada, mas há dias em que me faltam horas ou, se calhar, acordo tarde e, nesses dias, deixo cair partes sem dar conta da dasarrumação que me fica nos intervalos de cada passo para o dia seguinte. E a parte de mim que teima num fim do mundo eminente estremece em sobressalto e recomeça, por onde pode, a juntar o disperso espalhado em meu redor. E recolho no que encontro outros sentidos, outras lógicas de arrumação. Na alma mantenho a calma de saber onde estou e, embora o tempo me seja cada vez mais curto e pouco para me guardar em tudo quanto me abriga a existência, reconheço útil o esforço de aprender e guardar o que vou vivendo. Tudo quanto conheço terá fim. Até mesmo a alma, engrandecida por tudo quanto aprende e segura, um dia acordará exausta e perdida na imensidão acumulada. Porque guardo tudo, não esqueço nada. Não me abandono de sentido nem de propósito, mesmo quando acordo cansada das noites em que teimo não dormir para ter a certeza de que, no dia seguinte, o mundo amanhece para nova hipótese de vida.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Elasticidade

Marcel Duchamp, Mile Of String (1942)

Desde que comecei a pensar a sério sobre as coisas, o mundo mudou de tamanho e perdeu alguma cor. O pormenor tornou-se um profundo embaraço numa imensa teia de pensamentos cada vez mais densos e distantes do resto do mundo. Aqui e ali reparo na inutilidade do esforço da explicação. De nada vale querer a nitidez do inexplicável, porque ela não existe senão na formulação do problema isolado da emoção. E pensar a sério sobre as coisas é render-me ao constrangimento de procurar a ponta de um novelo imaginário de infinitas questões possíveis, umas reais, outras fingidas, outras ainda invisíveis. Na confusão de sentidos relativos que atribuímos às coisas, tropeçamos em empecilhos desarrumados em nós mesmos, pela nossa condição humana. O que perdemos em inocência prende-nos na teia como vítimas da nossa própria construção do mundo. E deixamos acontecer o limite da nossa própria elasticidade até rasgar. Depois disso o retorno a um corpo inteiro é implausível, é nada mais do que um exercício do espírito especulativo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sobressalto

Anabark, Árvore Vermelha (Natal 2011)


Tudo de novo, tudo ao contrário. Tudo diferente. Outro tempo, outro mundo, outra gente. Um universo inteiro de coisas sobrepostas que me espreitam da janela como ruídos de todas as ruas do mundo. Outra realidade me acorda para além das horas indecisas em que adormeci no silêncio incómodo das noites desertas do Inverno. Espera-me o entusiasmo pelo dia que vai chegar. Acendem-me milhões de estrelas cintilantes que coleccionei durante a madrugada. Desassossega-me o tempo ou a ideia de que ele se esgota e não me cumpro, deixei de acordar tarde para me chegar a horas. Abro uma gaveta de ideias claras sobre as coisas que me importam e o que eu importo no mundo de quem me estima. Quero viajar no tanto que sinto e que ainda não vivi.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Boato

Anabark, Debaixo de olho (JAN2012)

Corre o boato de que os animais vão tomar conta do mundo para salvar-lhe o pouco que sobra para salvar. Corre o boato de que estamos a ser observados à milhares de anos e que falhámos em todas as dimensões. Corre o boato de que o nosso tempo se esgotou e que temos, para bem de todos, de nos afastar e aprender o muito que nos falta para voltarmos a ser de confiança. Corre o boato de que as nossas boas intenções não chegam para coisa nenhuma quando nos falta a bondade natural de sabermos partilhar. Corre o boato de que todos os animais do mundo, domésticos e selvagens, vão resgatar o planeta das nossas mãos descuidadas e criminosas e governá-lo em nosso lugar. Ontem, de madrugada, a gata que vive em minha casa e os gatos de ninguém, que as ruas por onde passo abrigam, contaram-me que os animais são justos, embora de nós nunca tivessem aprendido um gesto misericordioso. Seremos tratados com clemência, embora saibamos que não merecemos esse respeito.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Matéria

Anabark, Geometria Obscura (JAN2012)

Tudo muda, tudo é relativo, o próprio universo é parte de uma infinidade de universos, como se o todo, afinal, não representasse nada ou apenas a ideia de um acto de criação contínuo. No universo não existe um centro mas múltiplos pontos de expansão. Não há um centro porque não existe um limite. O espaço é a geometria do universo. As mudanças no tamanho ou na forma do espaço acontecem por causa do movimento da matéria e da energia no universo. Somos nós, a matéria, que muda na sua densidade e o universo transforma-se. E ainda que o sol permaneça no mesmo sítio, não é único e, como tudo o que é matéria, tem a sua morte anunciada, porque a matéria nasce, vive e morre, para renascer, reviver e tornar a morrer, tal como nós, pela desagregação de energia, já que nada se cria e nada se destrói, tudo se transforma, sempre. E ainda que cada transformação implique uma perda, um consumo, um desgaste, um atrito e um esforço de superação, ficar no mesmo sítio é morrer, porque o movimento é a essência da substância. Importa, e muito, deixar que o sol nos acenda a dança dos átomos e nos renove continuamente a velocidade de ser.