sábado, 30 de dezembro de 2006

Desencontro(-me)

Senhora Saudades aka F. Next Destination, 2006

Que mal é pior, viver num pedaço de passado ou ir acontecendo num presente ausentes de nós mesmos? Nada do que sinto faz sentido a não ser pela certeza que me fica de saber sentir o que sinto tão intensamente. Tenho a sorte de ser amada e o azar de não amar quem me ama. E arrasto-me na infelicidade de um amor que perdi no instante de um relâmpago. E neste desencontro carrego a tristeza de magoar todos os dias quem me quer incondicionalmente. O meu presente é feito deste incómodo de querer o que não posso ter e não corresponder a quem me espera. No peito há um buraco vazio, o lugar do coração que ficou no passado; seguro nas mãos as mãos de quem, no presente, me quer bem. Espero que o coração me regresse para poder abraçar o amor que agora rejeito a quem me vai cuidando da ferida que só o tempo pode curar. Os dias passam lentamente e eu vou andando devagarinho como tu... desencontrando-me.

Bom Ano Novo

Para os amigos, os conhecidos e os ilustres desconhecidos que se demoram neste copo, subtraindo-lhe o vazio.
Saúde e alegria.

Não te quero senão porque te quero


Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Talvez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

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Perspectivas:Deixar de querer
Bocadinhos mistos #1 - Aim higher

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

O que diria a alma?

Juan Muñoz, Double Bind (instalação 155m x 35 m, Tate Gallery Modern)
(Foto de David Assante)

E de repente há vozes que falam e dizem coisas que eu sempre soube, mas que esqueci nestes instantes em que fixo o chão. Estão próximas, demasiado próximas para serem ignoradas. E de repente também, oiço a minha voz que vem de longe e que espera a sua vez. Não é a voz do coração, essa grita em desespero e de tanto gritar sem se ouvir, vai perdendo nexo e ganhando ruído. A voz que se ouve é a voz da razão, é pausada, distinta, com frases organizadas num sentido único. De repente há uma sobreposição de sons. Coração e razão falam ao mesmo tempo e eu reparto a minha atenção a tentar decifrar o que dizem. Gosto do timbre do coração e, ao mesmo tempo, deixo-me levar pelo conforto da razão. O coração fala-me da alma e do sonho que carrega dentro. A razão alerta-me, repete avisos infindáveis de um perigo qualquer que ainda não sei bem. A voz do coração embrulha-me na melhor parte de mim, naquilo que tento preservar intacto e vivo. A razão desperta-me, deixa-me séria, cinzenta e fechada numa ideia fixa. Sou duas pessoas ao mesmo tempo, divido-me entre o que sinto intensamente e o que penso desse sentir. O que me pode dizer a alma para desempatar?...

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

A areia dos dias

Bruce Berrien, Milford, CT, 2004

Se entre ontem e amanhã não houvesse a fragilidade das horas que nos medem o respirar, seria mais fácil viver o tempo que passa sem nos apercebermos da sua irreversibilidade. Viveríamos livres e inconsequentes, provavelmente felizes. Mas os dias passam e, sem que o possamos evitar, passam também anos. E envelhecemos. Umas vezes de fora para dentro, outras vezes de dentro para fora. E há um momento em que, finalmente, percebemos que não podemos perder mais tempo com faltas de assunto e coisas poucas e sem importância quando há uma falta de nós por resolver. E nesse instante, o tempo começa a passar mais depressa e nessa contagem acelerada dos dias, tomamos consciência de nós, do que queremos, do que não temos, do que ainda nos falta fazer. E então compreendemos que não podemos desperdiçar-nos mais, porque o tempo é impiedoso, não pára, não espera, esgota-se, e sem que demos por isso pode ser demasiado tarde para viver o tanto que nos falta. E quando olhamos para trás o que nos sobra daquilo que quisemos ser e viver? E quanto tempo teremos ainda para sermos o que não cumprimos? O dia depois de amanhã é uma incógnita, amanhã pode nem chegar a ser. Envelhecemos sem reparar que não temos muito tempo para tentar ser felizes. Passamos pelos dias como se tivéssemos a eternidade por nossa conta, sem a responsabilidade de fazer de cada dia um tempo único, cheio, bem vivido.
Amanhã quando acordar estarei um dia mais velha, tenho menos um dia de vida ou mais uma oportunidade de me resgatar e viver mais perto de mim?...

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Abraça-me

Rodin, Couple Saphique
Dá-me um abraço com a força com que gostas de mim. Sabes o que é um abraço? De que é feito? Sabes o que estou a pedir? Dá-me um abraço que me faça sentir que gostas de mim. Assim, sem pensares nas consequências, porque a única consequência de um abraço é o calor de dois corpos que se tocam e a força dos braços que seguram. Dá-me um abraço, não porque te peço mas porque gostas de mim. Um abraço apenas, da forma que entenderes, às horas que quiseres. Só um abraço, com a força que souberes e que me faça saber que gostas de mim. Prometo guardar debaixo da pele as marcas dos teus braços para me lembrar sempre que, longe, ainda gostas de mim.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

Deixar de querer

Marisa D.L. , ...I'll be watching you, 2006

O ano está à beira de acabar. Quero chegar-me ao fim e iniciar-me em algo novo e melhorado, longe do que me mantém aprisionada e me limita os movimentos. De ti nada me chega a não ser a certeza de que não voltarás. Gostava que, por um dia que fosse, trocasses de lugar comigo, como nos filmes. Talvez percebesses realmente como me sinto; eu entendo o teu lado e só por isso mantenho esta calma de jazigo. O que sei neste momento é o essencial para perceber que devo deixar-te ser como escolheste ser. Serás sempre o que és agora, demasiado insegura para seres o que gostavas realmente de ser, mesmo que acredites, ingenuamente, na pessoa forte que não és. Não sabes ser mais, independemente do que pensas que és capaz. Tenho de ser para além de ti, não sei suportar a frustração de não ser eu por inteiro. Esforcei-me sempre para não ser igual a pessoas como tu. Não sou nem pior nem melhor, sei apenas que me quero verdadeira e honesta comigo mesma. Tudo o que sou foi construído com base nesse esforço de verdade e tenho sido recompensada por isso. A minha vida melhorou no dia em que me disseste adeus e vai continuar a melhorar porque aposto por inteiro e estou habituada a ganhar. Cresci desde que te foste embora, sinto-me maior como pessoa. O poder que nunca ambicionei caiu-me nas mãos sem querer e a minha vida mudou. Os outros olham para mim com assombro e deslumbramento. Tenho uma vida de filme, diriam alguns. Eu rio-me do que dizem. Tenho tudo o que preciso para ser feliz menos o que realmente quero. É-se feliz não tendo aquilo que se quer realmente? Não. Contigo descobri o que quero e agradeço-te esse milagre. Lamento ter-te perdido no momento em que tinha o mundo inteiro para te dar. Agora, seguindo-te o exemplo 'a querer que as emoções cumpram o que a razão impera' como me disseste, tenho de deixar de querer-te e querer outra coisa qualquer que me faça feliz.

domingo, 24 de dezembro de 2006

Welcome to Lisbon F.

Senhora Saudades (aka F.), Postcard at De Wilderman (NOV06)
Dear F.,

You may be right, I'll never get to see the frozen canals of Amsterdam, but I don't mind, I already know what they look like. Probably you will never experience the magic of watching the snow falling over Lisbon, but you already know by heart this strange feeling of 'saudades'. I can only wish you feel at home now that you're around - Lisbon welcomes you. Your coming to town was my favourite Christmas' gift this year. And now that you're here, you must have realised 'saudades' never come to an end.
Merry Christmas in Portuguese land.

sábado, 23 de dezembro de 2006

E se depois?...

Bruce Berrien, Ready Broom, 2005

E se depois mudo de ideias? Não posso resolver a vida como quem muda a cor das paredes entre estações. E se me arrependo? Só me arrependo se fôr infeliz. E se não fôr capaz? Aprendo a conseguir. E se me faltar a força? Concentro-me no que realmente quero e vivo um dia de cada vez. E se deixar de acreditar? Enquanto sentir amor, acredito incondicionalmente. E se me enganar? Procuro o erro e tento percebê-lo. E se me enganarem? Pergunto porquê. E se me perder? Volto ao local de partida as vezes necessárias para encontrar o caminho. E se deixar de amar? Explicarei com cuidado e com ternura e segurarei com força para que doa o menos possível. E se me magoarem? Vão magoar-me certamente. E se depois me abandonarem? Quem me ama escolhe-me e fica para sempre na minha vida.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Não te sou

Peter Eklöf, Vasteras, 2006

Partes todos os dias que passam por mim e todas as horas sem ti são a hora da despedida. Revisito o adeus frio que serviste à mesa no dia em que te foste embora. Fico a ver-te partir uma e outra vez, tantas vezes que não consigo lembrar-me de outra coisa. Recordo-te a voz da partida, memorizei o tom em que disseste que não poderias voltar a ver-me ou estar exposta ao que te sou, fui, porque hoje já não existo em ti. Revejo-me aos pedaços, espalhada pelo chão, sem conserto, caída do céu à velocidade vertiginosa do teu desamparo e da tua falta de amor. Desconheci-te e desconheci-me nesse instante. Não te detiveste. Tiraste-me o chão, continuei a cair. Enterraste-me. Deixei de existir, porque eu era tu comigo. Morri-te, resolveste-me com brevidade, telegraficamente. Sou passado, uma memória, a ausência de que não sentes falta nem saudade. Sou a tua fantasia realizada, o intervalo na tua vida. A pessoa que hoje não te sou deixou de te importar, tornou-se indesejável e incómoda nos teus dias. Aceitei a derrota, não posso obrigar-te a escolher-me nem a fazer-te sentido, como me juravas antes de teres medo dos fantasmas que carregas de um tempo antigo. A pessoa que não te sou tem pena que não saibas gostar de ti. A pessoa que não te sou tem pena do que não sabes crescer para além dos outros por não te saberes amar. A pessoa que não te sou perdeu o teu amor, mas quanto vale esse amor frágil e obtuso que tem a duração de um intervalo entre estações? A pessoa que não te sou não roga amor onde ele existe numa linha tracejada.

Feliz Natal


Desejos de Boas Festas
a todos quantos vão enchendo este copo vazio

Dizem...

Analogic «Abraço», 2006
Dizem que a paixão o conheceu

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
AL BERTO

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

O meu inverno

Senhora Saudades «Parallel Universe»

Às vezes tenho frio, outras vezes não. Hoje tenho infinitamente sono. Os dias de Inverno têm uma beleza impalpável que me toca pontos sensíveis da alma, como um diálogo interno, fechado em mim mesma. Apetece-me muita coisa, mas sobretudo descobrir outra vida, ser outra vez noutro lugar. É inútil pensar no que não tem remédio, naquilo que não tem retrocesso, no que perdido nunca se irá recuperar. De nada serve o desgaste de tentar mudar a ordem das coisas que nunca irão mudar. E enquanto o mal estar e o desconforto persistem, muitas vezes sinto frio, outras vezes percebo que, insensatamente, afasto o mundo e torno distantes os portos de abrigo que me querem segura em terra firme, talvez porque me habituei ao gelo que me ficou quando deixaste de me embrulhar no teu abraço, talvez porque o único calor que me aqueceu verdadeiramente foi o teu sol de Inverno que durou menos do que uma estação. Às vezes tenho frio, outras vezes não. Esqueço-me do corpo quando adormeço quase sem querer. Por isso durmo pouco e tenho infinitamente sono. Assim deixo de sonhar e sinto mais tempo o frio conscientemente. São momentos dolorosos aqueles em que nos sentimos ausentes. Acordada existo mais tempo neste estado de deriva que a falta de sentido das coisas pressupõe, mas sinto-me viva e sei o que é sentir frio e não sentir. Talvez se te perguntasse se sentes o Inverno passar por ti, tu respondesses 'O que é que isso interessa? É assim que tem de ser.' E eu ficaria a olhar-te nos olhos a tentar fazer-te entender que não, que não tem de ser assim e que é tudo uma questão de tempo até adormeceres e não te lembrares mais de ti. Um dia acordarás e não te vais reconhecer nos estilhaços do espelho em que te partiste durante o sono. Tenho medo de adormecer e acordar igual a ti. Sinto o frio desse teu Inverno em que te preservas até desistires de ti mesma e me esqueceres de vez, assim como sinto os momentos dolorosos em que te abandonas nas margens de ti mesma. Tenho a certeza que sabes que desistires de mim é desistires de ti também.

O improvável

Jon Bertelli «Curiosity»


Às vezes, naquelas horas em que não sabemos bem de nós, dou comigo a pensar que pensas em mim como eu penso em ti. E imagino que me queres saber, que me procuras subtilmente sem eu dar por isso, que ouves o que eu digo quando penso que estou a falar sozinha. Eu sei que estas coisas que penso nos dias em que não sei de mim não fazem sentido, mas penso-as na mesma e, no meu navegar no improvável e quase absurdo, pergunto-te quando te encontro na imaginação 'Queres saber o que penso e o que estou a sentir?'. E, mesmo que não respondas, deixas entender que sim. Sorrio ao mesmo tempo que penso mais seriamente 'E para que queres saber sem eu que eu dê por isso?'... Curiosidade? Mórbida, talvez.

domingo, 17 de dezembro de 2006

Palavras de amor

Whatever you like... (The Word Company)

Não posso escrever-te nem dizer-te palavras de amor. Estás ausente há muito tempo e durante este tempo não te fizeram falta as minhas palavras de amor. Nada do que sou te faz falta e muito menos precisas das minhas palavras de amor. E eu não sei dizer palavras de amor a quem as rejeita e as torna indesejáveis e adoecidas. Pouco te restará do que fui contigo, memórias soltas disto ou daquilo, objectos escondidos no fundo de um armário fechado numa arrecadação escura e fria e pouco mais. O resto foi deitado fora com as palavras de amor que ambas escrevemos. São coisas que não precisas. De mim só precisas do silêncio. Palavras e silêncio jamais se encontrarão. Não sei escrever palavras de amor silenciosas, porque o amor silencioso não existe, é outra coisa qualquer mas não é amor. Não posso gritar-te palavras de amor que não queres saber. Às vezes pergunto-me que palavras de amor gostas de ouvir em substituição das minhas? Responderás o mesmo que me respondias a mim?...
"...Eu já não sei se sei o que é sentir o teu amor, não sei o que é sentir / Se por falar, falei, pensei que se falasse era fácil de entender..."
THE GIFT "Fácil de Entender"

sábado, 16 de dezembro de 2006

Por detrás da porta

Peter Elköf, PSE_9006, 2006
Sinto-te debruçada numa janela com vontade de saber este lado de fora. Curiosidade, talvez - és curiosa. Ou talvez tenhas, realmente, percebido que falei a sério quando disse que não voltaria a bater-te à porta que fechaste atrás de ti para teres a tua paz de espírito e a tua vida de volta. Ficaste mais longe não por me teres vedado o acesso - posso saber o teu número de telefone em menos de cinco minutos e tu sabes que sim e também sabes que não o farei -, mas porque deixaste bem claro que eu não conto, que estou definitivamente do lado de fora e que isso não te incomoda nem hoje nem ontem, quando quase morri de frio a tentar chegar-te. Quiseste desaparecer nas estações do ano, uma atrás da outra, decidida e firme, para bem longe de mim.
Mas hoje sinto uma corrente de ar que vem de ti, e recordo o teu perfume. Sinto-te à escuta por detrás da tua porta trancada. Não me encontraste por acaso. Nem nada disto que sinto é por acaso. Sinto-te uma primavera de destroços, um silêncio cheio de coisas para dizer. Continuas longe, mas, às vezes, por breves instantes, pressinto-te encostada à porta a tentar ouvir se alguma coisa se passa deste lado, ao mesmo tempo que tropeço nesses olhos apáticos de um hipotético abraço.
Eu disse: "a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis" / Tu disseste: "sentir a aragem que balança os dependurados" / Eu disse: "é o medo o que nos vem acariciar" / Tu disseste: "eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da porta" / Eu disse: "acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala"
MÃO MORTA "Tu Disseste" (cd «Primavera de Destroços» 2001)

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Devagarinho?...

Bruce Berrien «Rush 2», 2004

Devagarinho, dizes tu. Onde pensas chegar devagarinho? E assim devagarinho, se chegares, não será demasiado tarde para ambos os lados e para ti também? Que cresceste entretanto nesse devagarinho em que te dizes? Tens tudo o que precisas para viver melhor? Já és mais feliz do que eras há um ano atrás? Espero que sim. Espero que percebas que devagarinho leva muito tempo e morre-se lentamente nessa falta de qualquer coisa que não nos deixa andar mais depressa. Queres um conselho? Não te deixes adormecer numa morte lenta, nesse lado escuro onde vives de portas fechadas. Respira-te. Sente-te, ao menos. Deixa uma porta encostada e sente a corrente de ar. Embrulha-te um pouco na liberdade do vento que nos empurra um bocadinho mais além. Não te deixes morrer sem te conseguires no que te falta para seres tu completamente. Devagarinho perdes calor e ficarás só quando não precisarem mais de ti. Fria, morta por dentro, como as manchas que se escondem na escuridão. Vive-te como nos versos da canção...
"...Enfim de uma escolha faz-se um desafio / enfrenta-se a vida de fio a pavio /navega-se sem mar, sem vela ou navio / bebe-se a coragem até de um copo vazio /e vem-nos à memória uma frase batida / hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..."

Sérgio Godinho "O Primeiro Dia"
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Para reflectires

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Do lado escuro


O que esconde o lado escuro da lua?
De que lado fica o lado escuro da lua? Do lado direito? Esquerdo? Diz-me daí o que vês. Só sei dizer o que vejo daqui. Mas daqui é longe e a luz é pouca. Vejo manchas a alastrar de um lado para o outro, num sentido que me escapa. Observo o movimento e tento interpretá-lo, mas a minha perspectiva é limitada. Não posso sair de onde estou, mas desassossega-me a curiosidade de saber o que se movimenta nesse escuro que a minha vista alcança. Alguma coisa existe às escuras. Alguma coisa espreita de luz apagada. Alguma coisa se passa desse lado. Tu sabes, eu não sei. Sabes mais do que eu que não sei nada. Vês mais do que eu que não vejo nada. Passo horas a olhar para as manchas. Habituei os olhos à escuridão para poder ver melhor, mas ainda assim escapa-me o que mexe desse lado. Que vida acontece no lado escurecido que daqui não se vê, a não ser as manchas que vão mudando de sítio todos os dias, de um lado para o outro, como naquela canção dos Mão Morta que tu não conheces mas que eu sei de cor? Um mundo inteiro por descobrir. Não me digas que não se passa nada...
«...Eu disse: 'Eu não faço nada. Fico horas a olhar para uma mancha na parede' / Tu disseste: 'E nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptivel? / Eu disse: 'Nao. A mancha continua no mesmo sitio, eu continuo a olhar para ela e nao se passa nada' / Tu disseste: 'E no entanto a mancha alastra e toma conta de ti, liberta-te do corpo. Tu é que nao vês' / Eu disse: 'O que é que isso interessa?' / Tu disseste: 'Nada...' »
MÃO MORTA «Tu Disseste» (in Primavera de Destroços, 2001)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Pergunta-me

Anabark, Um coração no céu da cama (MAI06)
Neste silêncio que se ouve tão estrondosamente, pergunto-te 'Que perguntas me farias que me quisesses saber?' É um exercício em vão, eu sei. Tu não respondes nunca. E pensar que me queres saber é presunção da minha parte. As minhas perguntas, como tudo o que te disse desde que não somos, são-te dispensáveis. Incómodas, eu sei. Mesmo assim, pergunto-te 'Que gostarias de saber de mim se quisesses saber alguma coisa?'. Sentir saudades é sentir muitas perguntas a estilhaçar o silêncio. Saudades, digo eu... se as tivesses. Para sentir saudades é preciso liberdade para sentir. Tu não te deixas ser livre em ti mesma e, mesmo que não repares, tudo à tua volta vive espartilhado nessa tua prisão invisível. Mesmo que não te dês conta do que não dás, o mundo à tua volta reflecte essa ausência de ti. Não fui eu que te afastei do que te é essencial. És tu que estás ausente porque te rejeitas livre para te sentir verdadeiramente. O teu medo é antigo, eu fui apenas um pretexto para te justificares. Mesmo assim insisto 'Que resposta me imaginas a uma hipotética pergunta tua?', porque sentir saudades é fazer perguntas sem sentido como todas as que aqui vou deixando cair…

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Pagina colorida

HB & Senhora Saudades «A. in colours» (SET06)
BOA-NOITE!


Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa


Sophia de Mello Breyner Andresen

Página para colorir

Foto de HB & Senhora Saudades «A.» (SET 2006)

BOM-DIA!
"Morre lentamente...
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos..."
Pablo Neruda

domingo, 10 de dezembro de 2006

Neste nada de nós

Wind «Vasos que estão à Janela» (2006)
Neste nada que nos fica no tempo que passa, há perguntas sem resposta e respostas ao que nunca questionámos. Neste nada que nos esgota a memória de 'nós', há uma orquestra de silêncio a acompanhar imagens que o tempo dilui. Neste nada que nos espreita de alto a baixo dia após dia, há um caminho abandonado na escuridão que nos separa. Na ausência que me dás, eu invento o esquecimento. Voltares-me deixou de ser uma hipótese e esqueço-me de nós para me regressar sem danos. Vou desfazendo a hipótese de ti, porque agora sei que ela nunca existiu para além de mim.
Neste nada que sobrou de ti, conto as horas que faltam para não me recordar de nós. Não me esqueço de ti, esqueço-me de 'nós'. De ti recordo-te a pele na minha pele, o perfume eterno do teu corpo em mim e o desejo sem controle que nunca conseguimos esgotar. E desse tudo vem-me também à memória a frieza com que me deitaste fora e o egoísmo com que me cortaste a voz.
Acredita, neste nada que me resta vou lembrar-me de ti.

Ouço os remos, não vejo a água

Colin Homes «Holy Island Old Boat»
David Mourão Ferreira
Os Remos
Que rumor de remos
De que negra barca

Ouve-se tão perto
sem se ver a água

Vem Caronte ao leme
Ou tudo uma farsa

que ninguém encena
que ninguém aplaude

Em torno parece
adensar-se o nada

O que mais inquieta
já não tem palavras

Mas ainda resta
saber de que margem

ouvimos os remos
não vemos a água

sábado, 9 de dezembro de 2006

Estremecimento

Wind «Copo Partido», 2006

Assim, de uma forma inexplicável, instalou-se em mim, desde há alguns dias, um desassossego que sinto como uma ansiedade que não é minha, que vem de fora para dentro, como se alguém me quisesse chegar sem que eu soubesse ou me procurasse sem saber onde moro. Sinto assim esta força centrípeta em ondas circulares de uma energia desconfortável e desordenada, um efeito borboleta ao avesso que estremece o vidro frágil deste copo cheio de palavras ao vento. Algo estranho acontece por mim adentro, vindo de fora de mim, algo difuso, invisível e inesperado. Deixo-me ficar neste algo que não sei dizer mas sinto em estilhaços de vidro quebrado.

Vou contar-te uma história...

... que me contaram a mim:
A História do Porquinho Verde
"Era uma vez, numa quinta numa terra estranha e distante, vivia um pequeno porquinho diferente de todos os outros pequenos porquinhos ao seu redor. O pequeno porquinho era diferente de todos os outros porquinhos porque era verde, não, porque era verde fluorescente, mesmo, verde que brilhava na noite. Ora, o pequeno porquinho verde gostava realmente de ser verde.
Não que ele não gostasse da cor dos outros porquinhos, não, não era nada disso, ele até achava o cor-de-rosa uma cor bonita, mas, na verdade, ele gostava de ser assim, assim verde, assim um bocadinho diferente e um bocadinho peculiar.
Os outros porquinhos ao seu redor é que não gostavam nada do pequeno porquinho verde; tinham inveja da sua cor especial e, por isso, metiam-se com ele, faziam-lhe a vida negra, e as suas queixas e zangas permanentes acabaram por aborrecer os donos da quinta e um dia estes pensaram “Hmmm, o melhor é fazermos qualquer coisa para acabar com isto”. E, se bem o pensaram melhor o fizeram, e então, uma noite, quando os porquinhos estavam todos a dormir nos vastos campos da quinta, os homens agarraram no pequeno porquinho verde e levaram-no para o celeiro, com o pequeno porquinho verde sempre a guinchar e a chorar, e os outros porquinhos a rir-se dele, e quando chegaram ao celeiro os donos da quinta abriram este enorme barril cheio de uma tinta cor-de-rosa muito especial e meteram lá dentro o pequeno porquinho verde até ele ficar coberto da cabeça aos pés com aquela espessa tinta cor-de-rosa, e nem um pedacinho de verde ter sobrado, e depois mantiveram-no pendurado até a tinta acabar de secar.
E o que era muito especial a propósito desta tinta cor-de-rosa era que esta tinta não poderia nunca ser lavada ou pintada por cima. Não poderia nunca ser lavada nem poderia nunca ser pintada por cima. E o pequeno porquinho verde pensou “oh, por favor, meu Deus, por favor, não me deixes ser como o resto dos porquinhos, eu gosto tanto de ser assim um bocadinho peculiar”.
Mas era tarde demais. A tinta tinha secado e os donos da quinta mandaram o pequeno porquinho para junto dos outros porquinhos, e todos os porquinhos cor-de-rosa se riram do pequeno porquinho à medida que ele caminhava, triste, até chegar ao seu pedaço de relva favorito, tentando perceber porque é que Deus não tinha escutado as suas preces, mas não conseguia entender e então chorou, chorou até adormecer mas mesmo as dezenas de lágrimas que chorou não podiam lavar aquela horrível tinta cor-de-rosa pois aquela tinta não poderia nunca ser lavada nem poderia nunca ser pintada por cima.
Ora, nessa noite, enquanto todos os porquinhos continuavam a dormir nos campos da quinta, veio esta estranha tempestade, com grandes e grossas nuvens, e começou a chover, devagarinho primeiro mas depois com mais força e mais força e mais força. E esta chuva não era uma chuva normal mas uma chuva verde muito especial, quase tão espessa como tinta e, mais do que isso, esta era uma chuva ainda mais especial porque o verde desta chuva não poderia nunca ser lavado ou pintado por cima. Não poderia nunca ser lavado nem poderia nunca ser pintado por cima.
E então, quando a manhã chegou e a chuva parou e todos os porquinhos acordaram, os porquinhos descobriram que todos se tinham transformado em pequenos porquinhos verdes. Todos, menos um, claro, o nosso pequeno porquinho verde que era agora o único pequeno porquinho cor-de-rosa porque, nele, a chuva verde não fizera qualquer efeito por causa da tinta cor-de-rosa especial com que os donos da quinta o tinham pintado.
E, enquanto olhava para aquele mar de pequenos porquinhos verdes à sua volta, a maior parte dos quais chorava como bébés, o porquinho sorriu e agradeceu aos céus por lhe terem permitido que continuasse a ser assim um bocadinho diferente, assim um bocadinho peculiar. Sabendo que, afinal, seria sempre um bocadinho diferente.
E um bocadinho peculiar."
Retirado da peça The Pillowman (encenação de Tiago Guedes, Teatro Maria Matos, Set 2006)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Ainda te lembras?...


Hugh Macleod «So Tell Me», 2006 (Stormhoek label designs)
O que é que eu te respondia quando tu me dizias 'Amo-te' ?

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Pedir desculpa

Paula Armstrong «Forgiveness»

A inteligência e a grandeza de alma medem-se também pela capacidade de pedir desculpa, de admitir culpa e desfazê-la, de desmaterializar o erro e abrir um caminho novo por onde passear livremente de consciência tranquila. Porque, às vezes, magoamos profundamente e sabemos que estamos a magoar e, mesmo assim, insistimos convencidos que só há uma verdade, a nossa. Um dia, quase de repente, percebemos que nos faltou clarividência para entender que não existe uma verdade apenas e que a razão é uma questão de perspectiva. Magoamo-nos a nós mesmos ao magoar quem gostamos e quem sabemos que gosta de nós. Deitamos fora uma parte de nós que nos fará falta um dia, e quando esse dia chegar, será triste se acontecer ser demasiado tarde para pedir desculpa, porque quando passa muito tempo as pessoas magoadas desaparecem para sempre sem deixar rasto. Porque no tempo que passa as pessoas tornam-se desconhecidas e nessa distância perde-se tudo, mesmo aquilo que estiveram à espera de poder, um dia, perdoar. Errar é humano, pedir desculpa é aceitar a nossa humanidade. Perdoar depende do tempo que deixamos passar até tudo nos ser completamente indiferente.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Ver por entre a chuva


Incomoda-te a chuva? A mim deixou de incomodar, porque aprendi a respirar debaixo de água e descobri que as estrelas do fundo do mar são as estrelas que caem do céu por entre os intervalos da chuva. E enquanto me navego por entre marés e tempestades, que importância tem o Inverno que cai lá fora? Cá dentro, o céu não existe e a terra é imaginada e há um mar infinito a que me falta dar um nome e despejá-lo em seguida, porque perdi uma ilha e sei que não a voltarei a encontrar. Os marinheiros, na vontade que os ata ao leme, depositam fé de algum dia chegar. Eu tenho esperança na chuva que me inunda uma saudade indefinida como todas as coisas que não sei explicar.
Incomoda-te a chuva? Acho que sim, consigo ver-te daqui e percebo mesmo o que não percebes em ti.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Um sopro de vento

Bruce Berrien «Breeze», 2005
O vento que sopra sem deixar rasto traz-me à memória lugares perto de ti...
Ausência é conciliarmo-nos com a persistência das imagens do que ficou pelo caminho. O passado fica, mas o passado é estático, as memórias também se diluem no tempo por mais que tentemos segurá-las. Ao longe ficam pedaços de nós numa luz diferente da realidade. O vento conta-me que ainda aí estás e sei que nada é definitivo, muito menos as recordações que seguram a distância. Perder é deixar escapar, é ter de lidar com a certeza de não voltar, quando voltar é tudo o que se deseja e nos dá sentido.
Tudo muda, tu e eu também, nada permanece imutável. Quem parte vai olhando para trás como quem recupera fôlego para continuar. Quem fica resiste a seguir em frente e perde-se a olhar para trás. A existência é feita de ganhos e perdas, feitos e contratempos, um processo dinâmico de tudo e nada alternados. A perda dói-me por não poder cumprir aquilo que podíamos ter sido.

domingo, 3 de dezembro de 2006

Sem importância

Ralph Grose «Orange and Blue» (2006)
Esta vontade de nada sentir faz-me andar devagarinho debaixo de chuva, como se assim purificasse a alma deste sentimento sem sentido nem futuro, que trago ainda pendurado num qualquer recanto do coração. Estou encharcada até aos ossos e ainda me lembro do teu nome. O rosto não é o mesmo. Encontrei-te noutro dia e reparei - o teu rosto mudou. Reconheço-te o olhar, mas estranho-te os traços que te desenham a face. Estás diferente e eu também - não tenho nada para te dizer. Não te posso dar importância - importante sou eu, tu deixaste de fazer parte dos meus planos. Fica-te com o que tens e sê feliz nos pensamentos secretos em que te refugias todos os dias para poder continuar. Finge que está tudo bem - se calhar, está tudo bem, afinal de contas sempre viveste assim, nunca te exigiste mais do que uma mentira em ti mesma. Eu não finjo que está tudo bem, porque não sei fingir. Estará tudo bem no dia em que não conseguir definir com precisão o contorno do teu rosto.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Morrer de saudades

Anabark, Esconderijo (MAI06)

E que saudades se devem sentir da parte de nós que deixou de acontecer? Recordar é viver, mas esse viver de memória é também morrer um pouco no presente que descuidamos. As saudades matam o que existe e o que está por vir. Sentir saudades é morrer aos poucos num desperdício de nós. Se deixarmos o tempo à solta num vórtice desordenado, perde-se o sentido e a felicidade do instante que passa.
Lembro-me de quando vinhas ao meu encontro, com saudades a saltarem-te da boca. Lembro-me de dizeres 'morro de saudades no tempo que não estou contigo, mas gosto de sentir assim estas saudades'. Lembro-me de te responder 'adoro sentir-te com saudade e dizer-te da falta que me fazes!' Se hoje disser 'morro de saudades tuas' é porque não te tenho, porque não te vou reencontrar e, então, morre um bocadinho de mim a olhar para trás. Não é bem a mesma coisa do que dizer 'morro de saudades tuas' quando o nós existe e contamos os minutos que faltam para um novo abraço.
Ja não gosto de sentir saudades tuas, não quero lembrar-me de ti nem recordar-nos. Não faz nenhum sentido perder mais tempo contigo em memórias do que foi. Já que não posso evitar o acaso de encontrar-te ao virar esquina, quero esquecer-me de ti nos dias em que não te vejo. Quero passear-me descansada de ti.
Não quero morrer de saudades.

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Roubar tempo ao tempo

Escultura de Rui Chafes «Durante o Sono», 2002


Distraída dou por mim a perguntar-me o que fazer
quando nos sentimos correr contra o tempo,
como árvores estranguladas na floresta da chuva...
Felizes os lugares sem história e as histórias sem tempo
felizes aqueles que perdem tempo
por não saberem que ele existe
Eu vou passando o tempo a pensar o tempo que passa
sem saber se é o tempo que me falta
ou se faltarei eu ao tempo...
... a esse tempo que passa
ao tempo que não fica
o tempo que não espera
esse tempo ausente que não consigo alcançar
Não é a corrida que me pesa
mas o passo vagaroso que me prende
à incerteza de chegar ou não a horas

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

Conforto

Rodney McMillian «Chair», 2003
Estou sentada à espera de mim mesma
aqui dentro já passou muito tempo
e não sei se vale a pena esperar
não sei se algum dia vou chegar-me
se ainda aqui estou é pelo incómodo que é levantar-me
porque agora estou sentada
e sentada estou mais perto do chão
às vezes faz-nos falta saber que o chão existe
porque se dilui a vertigem da queda
e maior se torna a ilusão de um estar entre tu e eu
estou sentada à espera
não de ti, de mim
cansei-me de esperar de pé
sentada distraio-me
talvez até passe por mim mesma
e nem chegue a reparar...


sábado, 25 de novembro de 2006

Amor concreto e definido

E o que é o amor
para além desse fogo ardente
que não se vê só se sente,
dessa vontade que corrói por dentro
e nos mata de saudade?
Prisão de alma talvez
uma dôr sem corpo, um respirar descontrolado
uma força maior que se nos impõe em todo o lado
um querer tudo e nunca ter suficiente
amor é um chorar e andar contente
num abraço que desejamos para sempre
mesmo sabendo que não existe a eternidade

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Quantas horas te sobram?


Sabes quanto tempo tem um dia vazio de horas? Sabes quantos dias tem o tempo? Sabes quando as noites não chegam a amanhecer? Sabes quando começa o fim do que só vai no princípio? Dizes que sim, mas não sabes. Dizes por dizer, porque te enganas, porque vives nesse equívoco de que o tempo tem uma aritmética definida. E vives um dia atrás do outro como se os dias existissem como medida segura do Tempo, que é infinito por definição. Eu não sei olhar para o relógio e dizer, como tu, o tempo que nos passa, o tempo que nos falta e o tempo nos esgota. Sei apenas quando fico fora de horas, quando sobro aos dias e escapo às noites para chegar ao que me falta. Porque eu estou sempre ausente dessa medida a que te dedicas com determinação, que te organiza essa existência controlada em que te escondes para não te pensares no que te adivinhas e no que já sabes de ti. Porque é mais fácil viveres seguindo em círculo os ponteiros do relógio do que traçares uma linha recta em que te sintas verdadeiramente. Porque precisas de distrações penduradas nas horas que passam por ti. Porque sabes o que acontece quando te esqueces das horas e te regressas sem restrições. Porque não queres essa liberdade de ser e de sentir que te torna frágil por não estares habituada. Não queres ser tu, queres ser a pessoa que te inventas aos outros. Queres acontecer sem custos nem riscos, como se a vida fosse uma lista de tarefas simples, sem sobressaltos nem imprevistos. Desejas e não sabes ter. Sabes usar e deitar fora. Sabes desperdiçar o teu tempo no tempo de toda gente. Existes numa fita do tempo, espartilhada em ti mesma. Quando olho para trás, tenho pena de não te ter avisado que não vives para sempre, que não és infinita. Talvez percebesses que quando te quiseres encontrar poderás não ter tempo suficiente para ficares finalmente em ti a tentar cumprir o que te falta para seres feliz. Mesmo que andes sempre a horas certas, às vezes é demasiado tarde.

Depois do amor


E depois do amor, depois de nós, há dias que não são dias porque o tempo perde os ponteiros do relógio. Depois de nós há um espaço infinito entre o que fomos e o que julgámos ser. Depois do amor só vozes de silêncio respondem ao coração. Depois do adeus morre-nos o voltar a acontecer da mesma maneira. Depois do amor o longe é para dentro, na distância, na ausência, na falta. Depois, quando o tempo nos regressa, levantamo-nos do chão, olhamo-nos ao espelho e deixamos de olhar para trás. Se me rio depois do amor é porque desisto de pensar-te. Se não te penso não te desejo, se não te desejo não te quero e não te querendo não te amo. Depois do adeus não existes nem eu na primeira pessoa do plural do presente verbo amar.

terça-feira, 21 de novembro de 2006

O gato que se tornou rato

Senhora Saudades aka F. - Trapped (Amesterdão, OUT06)

Lembras-te quando me escreveste que 'a liberdade é a única forma de amar'? Talvez hoje percebas melhor o que disseste, se calhar, sem te dares inteiramente conta do que isso significa. Porque é a única verdade que sei acerca do Amor, embora reconheça que essa liberdade essencial seja um esforço difícil quando amamos perdidamente - porque somos animais territoriais e assumimos o sentimento com absoluto egoísmo, porque queremos guardar para nós o tesouro que só a nós pertence. Mas a verdade é que quando amamos alguém devemos, acima de tudo, fazer com que esse alguém se sinta totalmente livre e que a escolha de ficar seja realmente uma escolha, porque aprisionar não é um acto de amor mas de dominação sobre o outro.
E a propósito das tuas suposições a meu respeito quando ainda mal me conhecias, expliquei-te que 'gostar' não é 'amar' e que há uma certa crueldade em receber amor e não dar igual. Não digo a palavra 'amo-te' facilmente, nunca sem o sentir, porque sei o quanto vale o verbo 'amar'. Não minto, omito. Seria uma má pessoa se mentisse e não minto em relação aos meus sentimentos. Não faço promessas que não posso cumprir. Quando oiço a palavra 'amo-te' baixinho no meu ouvido, não respondo o que não sinto ainda que goste muito, mas 'gostar muito' não é amar. Não engano. E sim, sinto-me responsável pela pessoa que diz que me ama, mesmo quando não sinto igual, e respeito-a, mas tal como tu, não obrigo ninguém a ficar. Dizes tu que temos sentimentos nobres e um bom coração, mas sabemos muito bem que isso é pouco para dar a quem nos confessa amor. A responsabilidade de ficar ou partir é de quem se sente mal com a situação, não achas? A culpa reparte-se - é menor quando não mentimos em relação aos sentimentos, mas ninguém sai ileso.
Quanto à palavra que não digo, não a temo. Não é por medo que não digo - não a sinto e se não a sinto, não vou mentir. Sei distinguir as coisas, já amei, muito poucas vezes, mas amei tão completamente que hoje já cresci o suficiente para não confundir 'amar' com 'gostar muito'. Quando te conheci vivia segura e intocável, com mil cuidados para ninguém me surpreender, para não me magoar. Esperava como um caçador espera a presa e era o mundo que vinha ter comigo e eu avisava quem chegava 'Por favor, não te apaixones por mim'. E tu disseste-me, 'Haverá um dia em que o caçador se torna a presa!' É verdade. 'É o risco e o desafio da caça - há animais que não conseguimos vencer, estejamos ou não preparados. Só posso desejar - tal como tu desejas - que seja um desafio justo - um dar e receber sem condições e em partes iguais.' – respondi eu.
E vieste tu. O que aconteceu entre nós foi tudo em partes iguais. E a meio de tudo, a luta pela sobrevivência.

domingo, 19 de novembro de 2006

Luz da Primavera (versão ficcionada)

Anabark - Luz e Nevoeiro (NOV06)
"Foram os dias de ouro dos meus trinta e três anos, que eu julgava então – e ela também – próximos do fim, porque deslizávamos ambos sobre tapetes de risco. Já nem sei bem como me apareceu, a pedir conselhos, a falar-me dos meus quadros, com poemas nas mãos que desafiavam todas as regras da vida e da arte. Tinha – e de começo assustei-me – apenas dezassete anos e toda ela brilhava de confiança em si, de insubmissão, da ânsia de tudo ler, tocar e conhecer. Sentia-se que a Faculdade onde acabava de entrar seria apenas para ela o patamar de um espaço mais vasto da descoberta..." (*)
...Os dezasseis anos de diferença que nos separavam diluíam-se, de um lado e do outro, no prazer de olhar tudo à nossa volta pela primeira vez. Eu a descobrir o passado, ela a investigar o futuro. A sedução de ganhar tempo ao tempo embrulhava-me todas as noites no sonho de acordar mais depressa, para assistir à sua juventude irrequieta queimar-me a pele ao entrar-me por entre os dias. Não me lembro da primeira vez que ela olhou para mim. Lembro-me sim, de dar por mim a procurar-lhe o riso, a motivar-lhe o entusiasmo nesta ou naquela ideia ou, simplesmente, a dar-lhe espaço para uma pergunta maior à qual eu, de forma matreira, prolongava a resposta, só para a ter mais tempo a olhar-me nos olhos.
A felicidade que lhe iluminava a alma pelo muito que queria conhecer, alimentava-me, em segredo, o desejo de querer ensinar-lhe a paixão que, como um relâmpago estihaça a noite escura, me devorava a quietude dos dias. Sentia o fim do Inverno chegar ao ouvir-lhe os passos e a irreverência do estar num mundo demasiado pequeno para o infinito da sua ansiedade. Tudo era pouco para ela. Aprendia depressa e queria saber mais. Perdida na sua vertiginosa velocidade, ensinava-lhe tudo o que sabia, ao mesmo tempo que aprendia a agradar-lhe quase de forma inesperada.
Um dia percebemos que nos estavamos a aprender uma à outra. Um dia, ela deixou o mundo lá fora seguir a sua história e reparou no nosso mundo cá dentro, já demasiado consistente para ser ignorado. Esperei por esse dia todos os momentos em que sonhei acordada e todas as noites em que adormeci a percorrer-lhe o corpo e a desenhar-lhe um coração por cima da pele. Esperei que descobrisse por ela, que reparasse. Esperei que sentisse como eu. Lembro-me do momento em que me olhou, como se nascesse, e disse, 'E tu? Sabes quem és?'. Nesse instante, vi-lhe os olhos translúcidos atravessarem os meus e vasculharem-me o coração até eu ficar tão transparente quanto o princípio de lágrima com que me brindou na sua curiosidade. Pela primeira vez não respondi. Indefesa e transparente, a mostrar-me no meu silêncio, fiquei à espera de encontrar-lhe um caminho seguro para abrigar a palavra amor, que carregava, secretamente, na ponta da língua, em todas as palavras de todas as conversas que tivemos antes dela, nesse dia, perguntar por mim. Na minha exposição silenciosa, ela cresceu uma vida inteira e disse, 'Eu sei o que és para mim. És luz. És a arte e a poesia da vida. És tudo o quero ser para alguém'. E naquele momento renasci. O sangue voltou a animar-me as veias. Ganhei a cor dos quadros em meu redor. Lembrei-me do sol e roubei luz para olhar para ela. Senti a Primavera para sempre regressar-me quando lhe disse, 'Sou o fim do Inverno porque tu existes. Vivi séculos de escuridão até aqui e tudo o que aprendi foi para te descobrir. Sonhei-te de noite e pintei-te de dia, esperei-te em todas as telas da minha vida. Não existo se não fôr para ti.' E vivemos a vida inteira no nosso primeiro momento de paixão.
Vivemos um amor intenso e arriscado que a diferença de idades e o olhar acusador dos outros acabou por não poupar. E quando nos abandonámos, pensei em morrer. Morri muitas vezes na distância que nos separou. Sobrevivi a custo. Salvou-me a fé de um dia voltarmos a existir na Primavera dos dias. Ainda sinto que somos uma desde o princípio do mundo.
(Always a partir de um parágrafo de Urbano Tavares Rodrigues)
(*) Excerto do conto «Luz da Primavera» de Urbano Tavares Rodrigues

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Proporcional

Anabark (OUT06)


"É tão curto o amor,
tão longo o esquecimento."
Pablo Neruda

Cores partilhadas

Smarties
- Conseguiste?
- Sim.
- São de que côr?
- Azul.
- Sabem a quê?
- A azul...

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Manual de sobrevivência

Anabark, Espaço vazio (SET06)


Que falta nos faz quem nos quis morrer? Nenhuma.
Se esse destino nos fugiu importa agarrar o que ficou de nós e pensar os dias fora do nevoeiro que nos turva os sentidos numa noite interior sem fim, porque se não temos cuidado afogamo-nos sem ter tido tempo de aprender a respirar debaixo de água e assim ficamos no fundo do mar por muito tempo. A dor da perda é uma armadilha perigosa, um limbo onde nos fica presa a alma, suspensa e frágil, quebradiça.

Mas o mundo lá fora não repara e tempo não pára, a ordem das coisas mantém-se, só nós permanecemos desencontrados, porque os nossos hábitos foram bruscamente interrompidos pelo desacontecer do que acreditámos único e inesgotável.
E como sobreviver quando desacontecemos? Procura-se refúgio em coisas nos tornem mais fácil aceitar que perdemos, que nos enganámos, que nos enganaram porque nos fizeram acreditar que acertámos ou, muito simplesmente, que assim tinha de ser. E então inventamos, mentimos, pensamos coisas, umas que são outras que não, para suportarmos a ausência. É quando repetimos para dentro que quem partiu é apenas um hábito na nossa vida. As pessoas que amamos tornam-se hábitos - um hábito bom, contudo, um hábito. E quando quebramos um hábito custa... no início, mas depois passa, porque tudo passa, mesmo ficando sempre alguma coisa no fundo da alma, às escondidas. A princípio é difícil, depois encontramos uma substituição qualquer, porque o que nos faz realmente falta é o hábito. E assim conseguimos sobreviver à ausência e para além dela.
Se pensarmos bem só nos faz falta aquilo que temos, por isso temos. Do que não temos passamos bem sem - a falta é substituível. Se assim não fosse a saudade mataria. Mas não, o que nos consome verdadeiramente é a absoluta falta de clarividência.

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Apetece-me brincar

THE CMONS
dias assim, dias de alma vaga
dias em que seríamos felizes num qualquer recreio de escola
entre o deve e o haver,
indiferentes e brincalhões
a mascar tempo numa pastilha.
Há dias assim, dias rebeldes e sem causa
em que apetece brincar e transpirar sorrisos
por tudo e nada ao mesmo tempo.
Dias assim sem horas, deitados fora,
e sem nada se perder.
C'mon!

Pequeno-almoço


Hoje quis chegar primeiro e preparar-te um pequeno-almoço como os que me deixas na imaginação a meio da manhã...
Bom-dia!

terça-feira, 14 de novembro de 2006

Menos é nada


Anabark - Tempo (MAR06)
Ontem eras um tudo,
hoje o espaço breve de uma recordação.
Menos seria nada e mais do que isso pouco para mim
agora que aprendi o que não és.
Ser pouco a quem ficou sem nada é ser alguma coisa
e hoje és o que resta do que não me vês,
amanhã, no que não chega, um pouco menos ainda
e depois de depois de amanhã deixarei de querer saber
o que me ficou, depois do amor, no coração
que te inventou e se perdeu
no que não se cumpriu.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

A medida exacta do imesurável

Anabark - Profundidade (SET06)

E não é no amor que não nos chega que descobrimos a medida exacta do amar?
O sentido das coisas está na força com que elas nos alteram a forma organizada como entendemos o mundo. Nada é o que julgamos ser com tanta certeza. Tudo pode ser de outra forma qualquer, basta que para isso nos demos conta de um sentir diferente do planeado.
A vida não acontece num todo mas nos dias partidos um a um, na soma das partes do que somos ou julgamos ser. A verdade que se descobre, e que nos descobre, vem em doses separadas e o amor que é tudo pode tornar-se nada, porque, às vezes, não somos suficientes para segurar e fazer acreditar o 'nós' que planeamos quando sonhamos acordados.
Às vezes, esquecemos a inevitabilidade da hipótese de fim que todo o princípio pressupõe. E caimos. E aprendemos um pouco mais sobre a medida exacta do amor que se diz infinito e da fronteira entre o delírio e a realidade. E assim se nos descansa a alma para voltarmos a respirar.


domingo, 12 de novembro de 2006

Distância

Anabark, Feuilles mortes (SET05)

Longe se torna o teu corpo rasgado pelo meu apetite inútil.
Vago e efémero o sentido da minha vontade de ti.
Porque amo-te agora,
de manhã já te esqueci.

sábado, 11 de novembro de 2006

Red lamps

Senhora Saudades (aka F.)- In diferent colours (OUT06)
F.
I remember looking at the red lamps on my last day in town.
I remember the walls, the chairs and tables in that bar.
I remember the talk and the rain outside
I remember you holding my hand for a while
I remember us killing time to say goodbye
I remember you dressing me with a smile
I remember parallels and universes colliding

I remember you and I remember me
I remember it clearly
I remember...

Is all that we see or seem
But a dream within a dream?

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Azul algures...

Analogic, Pelo caminho (2006)
A.
Vou coleccionando os postais que me envias com a maior atenção ao que te dizes e à tua vontade de aprender-te. Gostava de poder dizer que tenho coisas úteis para te ensinar, mas tu sabes o que eu sei ou mais ainda. Tens muito, mais do que eu talvez. O caminho em que te procuras está à beira da tua vontade de ser completamente. Não me parece longa a caminhada - sabes onde estás e queres muito encontrar-te e há a promessa de um abraço de 10 anos no fim do caminho. Não será essa a força que precisas em cada passo que dás?
As perguntas que me fazes são importantes. Tenho receio de não saber responder, porque a minha noite é de outra natureza e a distância existe. Como posso ensinar-te a segurar quando não fui suficiente para ser guardada? Posso partilhar-me e receber-te, vigiar-te os passos e ouvir o teu grito em postais de ti. Tudo isso abraço e seguro, mas que posso eu realmente ensinar-te se não aprendi mais do que descobres em mim? Em que pode a minha noite ser-te útil se nem a mim me faz sentido?
Tudo o que aprenderes de mim são hipóteses, meras possibilidades de resposta. O resto, o essencial, está em ti e no esforço que te sinto disposta a regressar-te com o mesmo peito aberto com que me escreves e te revelas.
Gosto dos tons de azul que me dás a conhecer.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Curta

Analogic, Grito da cidade (2006)

Precisava de uma fúria que durasse mais tempo!

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Respostas

Anabark, Frágil (MAI06)

Lisboa, Agosto. 2006
"Que sabes tu do que me tem custado a mim? Perdi-te a ti, perdi-me a mim, e só aos poucos recomeço a encontrar-me. (...) Não desisti de ti, nunca desistirei, continuarei a querer-te e a amar-te à minha maneira (quem sabe, egoísta e cobarde, como dizes). Pode parecer-te crueldade da minha parte não querer saber dos teus sentimentos, te garanto que não é. Dói-me mais a mim que a ti – tenho quase a certeza."
Como podemos avaliar isso? Em noites sem dormir, dias sem comer, lágrimas permanentes, horas à deriva pelas ruas a tentar fugir de nós mesmos?... Achas que não me dói saber que tu aí também sofres? Achas-me tão egoísta que não pense que te dói também a ti? Achas que as minhas lágrimas não são as tuas também? Achas que não vou viver para sempre essa dor? Com que balança se pesa a dor? Foste tu que partiste. Quem criou a escuridão? Parece-me que és tu quem tem de caminhar até mim, se algum dia me quiseres voltar a encontrar, e não o contrário.